sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Como me Tornei o Professor que Sou

Em homenagem a este Dia do Professor (15/10), segue trecho de um texto do mestrado, feito à pedido da Prof.º Tânia Fisher, sobre os professores que mais nos marcaram durante a nossa formação:
"Dos anos tenros, onde se inocula conhecimento mais pelo carinho do afago do que pelo volume da voz, guardo lembranças da Tia Neide. Não sei se conhecedora dos vastos ensinamentos de mestres como Jean Piaget, Anísio Teixeira ou Paulo Freire, esta pequena notável de 1,60m, que na minha meninice parecia gigantesca, como que sabia instintivamente que as crianças são, como repetem os especialistas, verdadeiras “esponjas” do mundo ao seu redor. Assim, sabendo que o conhecimento posto à disposição será absorvido, restava tornar essa absorção natural o mais deleitosa possível, com cantigas e carinhos dignos de “mães de meio período.”
O desenrolar das lembranças vai me encontrar já nos anos 1990. Lembro-me bem do professor de História Chico e da professora de português Vitória Régia. O primeiro, no que depois descobri ser a essencial dos professores de história, despertava como poucos o nosso senso crítico então florescente. Não se limitava a descrever o passado como algo a ser decorado. Pelo contrário, mostrava como o nosso presente não era algo posto, como que ali sempre existente, mas fruto de outros presentes pretéritos, cujas conseqüências nos colocavam naquele exato momento, sentado naquelas exatas carteiras, com seus braços de fórmica branca, pergaminhos modernos a guardar, esculpidos com a ponta de ferro dos compassos, da fórmula de báscara a declarações apócrifas.
Das aulas da professora Vitória Régia, não guardo sequer um nome dos autores característicos do Simbolismo (Seria o Cruz e Souza?), mas tenho cravado na retina e nos tímpanos as suas performances viscerais quando, a pedido dos alunos, declamava poemas com toda a força dos pulmões, ao tempo em que lhe corriam a face lágrimas numa profusão tal que imaginei ser incapaz a qualquer outro ser humano (Descobri-me errado quando, sozinho em uma catedral humilde, contemplei todo o vigor do meu pai-herói reduzido a um corpo inerte contido num claustro de madeira em cujo carvalho falso escorria a verdade das minhas próprias lágrimas). Da professora Vitória Régia guardo a entrega ao limite de um professor em sala de aula, mostrando-nos a intensidade da vida, do amor mais sublime à angústia mais paralisante. Talvez em função de um amor nem tão sublime, devo a ela também o meu primeiro contato com a morte. Amante de um homem casado, a sua presença na escola foi suficiente para uma esposa ensandecida atirar, acidentalmente, na querida Lina, secretária da escola e muito estimada entre os alunos. A sua morte me faz agora refletir, tendo por foco a atividade de professor, o quanto nossa vida pessoal vai para dentro da sala de aula conosco. Na época, minha única lição foi como os sentimentos podem se transformar: o desejo da professora na saudade da secretária; o amor da esposa no ódio da assassina; a admiração do aluno no desprezo da testemunha.
Na UNEB, as maiores lembranças são das professoras Maria Palácios, Zalvira Vilasboas, Débora Nunes e Miriam Velasco e dos professores Vítor Lopes, Milton Júlio, Armando Branco e Clímaco Dias. Se tivesse que resumir as características que busco absorver desses professores, aquilo que os tornam meus mestres referenciais, sob pena de esconder suas outras qualidades, diria: da professora Palácios, a erudição; da professora Zalvira, a calma; da professora Débora, a responsabilidade social; da professora Míriam, o senso crítico; do professor Vitor, o rigor científico; do professor Milton, o profissionalismo; do professor Armando, o estímulo à produção do aluno; e do professor Clímaco, a visão holística.
Na Faculdade de Direito, não faltam grandes conhecedores das questões jurídicas. Porém, como já abreviei anteriormente, o ser professor é mais do que o ensinar princípios e liturgias. É atingir, além das mentes, os corações dos alunos. É neste quesito, dois mestres são imbatíveis: os professores Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona.
O professor Rodolfo Pamplona é uma das nossas maiores autoridades em Direito do Trabalho. Matéria, para mim, totalmente alienígena dentro dos meus interesses no campo do Direito (Filosofia e Sociologia Jurídicas, Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional sempre me atraíram mais). No entanto, com a capacidade que só os grandes professores têm, a aula do professor Pamplona tornava assuntos como competência trabalhista e ritos processuais alvos dos meus mais esforçados comentários. Olhando nos olhos de cada aluno e dando-lhe o máximo da sua atenção quando lhe esclarecia uma questão, o professor Pamplona mantinha um permanente sorriso. Esse sorriso inefável comprovava diariamente o que ela havia nos dito no primeiro dia de aula: estava ali porque amava ser professor, e não por dinheiro ou prestígio, ambos já conquistados à frente da 1ª Vara Trabalhista da Bahia.
Quanto ao professor Pablo, torna-se ainda mais difícil resumir as suas qualidades cujo mimetismo é nossa maior ambição. Brilhante orador e profundo conhecedor do Direito Civil, suas aulas são lendárias, atraindo ouvintes como nenhuma outra na faculdade, a ponto de acumularem-se carteiras avulsas além daquelas do vasto auditório que constitui cada uma das salas laterais da Faculdade de Direito. Showman assumido, circula por toda a sala, microfone em punho. Quando em algum instante para de súbito, é apenas para dar ênfase dramática a alguma informação que acha especialmente importante ser lembrada por sua turma, misto de fãs e acólitos. Profundo estimulador do pensamento de cada aluno, busca a todo instante incentivar a fala, o comentário, a pergunta. Foi dele que ouvi pela primeira vez a frase por mim muitas vezes repetidas para meus próprios alunos: “Não existe pergunta boba. Existe bobo que não pergunta.” Assim ele desmistificava o temor reverencial imposto por professores que não queriam ser incomodados pelas tais “perguntas bobas.”
Esse estímulo à participação, numa turma que facilmente tinha 70, 80 alunos, implicava em vencer a barreira de ser o foco das atenções, coisa que alguns naturalmente buscavam e outros naturalmente temiam. E não bastava perguntar ou comentar. Era necessário fazer uma pergunta inteligente, um comentário relevante. Sabíamos que tínhamos atingido esse objetivo quando o professor Pablo nos olhava de volta e perguntava: “Qual o seu nome?” Lembro-me bem que a primeira vez que isso aconteceu comigo, foi como ter ganho um prêmio Nobel. Com a resposta, seguia-se um elogio à pergunta/comentário e a aula seguia a partir daquele ponto, como se você tivesse feito a maior descoberta da história moderna do Direito. Até a próxima pergunta. E assim por diante. Essa sensação prazerosa só tinha um problema: era extremamente viciante. Assim, passei a fazer algo que hoje, no mestrado, parece muito natural, mas que para mim começou ali, nas aulas do professor Pablo e na busca de mais um “Ótima pergunta!”: estudar para a aula seguinte.
É com legados como esse, do professor Pablo e de tantos outros mestres que tive, que busco construir o meu próprio caminho, na esperança de deixar nos meus alunos a marca em mim deixada por eles."