Olá novamente. Novamente porque fiquei sem pôr os pés aqui por muito tempo desde a última postagem, onde dizia que esperava não ficar tanto tempo fora. Porém, lembrem-se que criei esse blog com uma condição: não ter obrigatoriedade de atualizá-lo. Ocorre que isso é condição sine qua non para se criar um blog!! Por que alguém leria algo hoje para saber que, daqui há um mês, encontrará a mesma coisa se olhar o blog novamente. Esse sentimento de culpa quase me faz querer mudar o nome do blog para "cartas para mim mesmo". Pelo menos seria menos angustiante saber que a única pessoa que lê essas mal escritas linhas sou eu mesmo e, é claro, eventualmente Juli, minha cúmplice. Ah, agora uma terceira pessoa sabe desse blog também, o Eliziel, figuraça com quem bato altos papos no fim do expediente da SEDHAM (na verdade, os papos são tão legais que se estendem pelo fim do expediente adentro, até que finalmente o cara cansa de se submeter a minha verborragia. Mas certamente é uma das poucas pessoas que eu conheço que sabe que slipknot não é marca de batom e que o cinema não é feito só de Titanic, mas de coisas singelas como Centopéia Humana e Holocausto Cannibal.) Mas a menos que The Platelminto's (nome fictício que dei à quase-banda de rock que ele teve) anunciem um retorno triunfal ao cenário rocker baiano, o velho Eliziel não é o tema desse post, mas sim a minha cidade.
Esse post, na verdade, descreve algo que faz parte dos meus "hábitos estranhos", entre os quais também podem se enquadrar o fato de eu só tomar café a partir das 17:00 no trabalho (alguns colegas costumam acertar o relógio quando eu me dirijo à garrafa térmica) e a minha preferência por chafurdar na poeira de sebos antigos ao invés de ir a uma livraria devidamente climatizada como a Cultura do Shopping Salvador (maravilhosa por sinal!) ou a LDM na Piedade (meu oásis no pós-almoço, sempre na Fazendinha, na lateral do Center Lapa). Esse hábito consiste em "flanar" pela cidade. Não sei se posso aportuguesar assim a expressão "flâneur", que ficou famosa nos versos de Charles Baudelaire (autor de "Flores do Mal"), mas trata-se de andar pela cidade, sem destinos ou horários pré-determinados. Digo hábito porque faço isso com alguma constância, apesar de bem menos do que já fiz no passado e do que gostaria de ainda poder fazer. O fato é que o Centro da cidade tem um simbolismo forte para mim. Interessante que não se trata do Centro que tem como marco o Pelourinho ou a Praça Municipal, mas sim o Centro que tem por origem a Estação da Lapa. Como usuário do sistema de ônibus até o final de 2008, tenho lembranças de estar sempre passando pela Lapa a caminho de algum lugar. Até que desenvolvi a mania de também passar pela Lapa a caminho de lugar nenhum. Estou tentando lembrar se, na infância ou adolescência, eu tinha algum motivo em especial para ir tanto à Lapa e realmente não me lembro. Nunca estudei no Central ou trabalhei na Avenida Sete. Sei que de 2001 em diante, por razões de trabalho e do coração, tive um itinerário bem intenso que começava, de manhã, no Porto da Barra, na ARCON - Arquitetura e Consultoria Ltda, meu primeiro trabalho como urbanista recém-formado, à convite do grande Claudson Moreira (quando eu estava deixando o estágio na SEPLAM, em 1999, ele estava entrando na secretaria. Alguns poucos meses de convivência foram suficientes para que ele me desse minha primeira chance de trabalho. E me rendesse um fato que eu repito sempre e me enche de orgulho: me formei numa sexta-feira, as festas se estenderam até o sábado e a recuperação tomou todo o domingo. Na segunda, de manhã, meu telefone tocou e, com o convite de Claudson para trabalhar no PEMAS de Candeias, eu já estava empregado antes mesmo de procurar emprego). Depois eu ia para a Ladeira da Misericórdia, do lado da prefeitura, onde ficava a Fundação Ondazul (cuja experiência ao lado de Eduardo Neira e Cia mereceriam não um, mais vários posts. Vou colocar aqui no blog um texto que conta um pouco dessa relação com a Fundação Ondazul e com Eduardo Neira em especial). Depois caminhava até a casa da professora Palácios (outra figura importantíssima para mim e que merece e terá um post aqui), na Cruz de Pascoal, entre o Pelourinho e o Santo Antônio Além do Carmo. Lá estava no paraíso, pois para um leitor fanático como sou (e cujo fanatismo só tem piorado com os anos), a casa de Palácios é algo como a Fábrica de Chocolates de Willy Wonka, pois parece feita de livros, do piso ao teto (incluindo as paredes, forradas de livros em enormes estantes). Lá passava algumas horas deliciosas catalogando os livros dessa mestra tão admirada. Ao final, dava uma andada "monstro", mas por uma boa causa: namorar no Duque de Windsor, na Piedade, de onde descia, acompanhado, para terminar meu dia na Estação da Lapa. Por esses e outros motivos, a Estação da Lapa tem um lugar especial no meu mapa topofílico (ou seja, aquele mapa formado pelos lugares que gostamos e que constituem a nossa cidade interior, nossa endocidade, como chamo em um texto que apresentei num seminário sobre espaços públicos, a pedido da professora Míriam Velasco. Essa também tem direito à post, com certeza. E post com sotaque colombiano, como sua conterrânea Shakira. Vou colocar aqui também esse texto).
Bom, mas voltando ao bovino criogenado (a.k.a. vaca fria), falávamos de flanar pela cidade do Salvador, sem eira nem beira, horários ou compromissos. Essa "escapadinha" se deu na ausência da minha querida Juli, que estava num curso de interpretação teatral no Rio de Janeiro. Aproveitando a ausência (pense bem: como você reagiria se seu namorado(a) dissesse que vai dar uma volta, sem destino certo ou horário para voltar? Se você respondeu que não acharia nada demais, certamente seu nome não é Juli Arize...) Pois bem, no último final de semana "livre" (entre aspas, porque adoro saber que vou ficar "preso" a ela por muitos anos), aproveitei para retomar esse velho hábito e, literalmente, sair por ai. Comecei pegando o carro (calma, quando falei de percorrer a cidade a pés, foi exatamente isso que quis dizer) e fui até o Center Lapa (ahaa!) e deixei o carro devidamente guardado. E de lá comecei o verdadeiro flanar. Sem destino pré-definido, pensei um pouco e decidi: Berinjela. Local também digno de post, o Berinjela é um sebo/lanchonete/espaço cultural que fica num bequinho próximo à Rua Chile. Com dois andares, tem um dos atributos que mais aprecio em um lugar: pilhas e pilhas de livros, numa organização que beira o caos (em sua versão criativa, à la James Gleick). Além disso, conta com a presença do simpaticíssimo Jorge, ex-industrial que agora se dedica ao Berinjela e com quem já fiz alguns negócios da China (entre os quais clássicos como A Questão Urbana, de Manuel Castells; a Democracia na América, de Tocqueville; e Uma Teoria da Justiça, de John Ralws, todos por R$ 15 reais ou menos). Falar do Berinjela me lembro dos tantos outros sebos que conheço (Papirus, Graúna, Brandão...), que valeria a pena fazer também um post sobre eles. Anotado. Bem, colocando as pernas para funcionar, sai do Center Lapa, atravessei a Praça da Piedade, chegando ao Relógio de São Pedro, de onde desci a Avenida Sete de Setembro. Só nesse trecho, você já vê o movimento, as pessoas, os prédios, a mistura de tudo que faz o cenário das ruas dessa cidade. Todos os cheiros e cores, toda a urbanocinética que vivifica a estrutura construída e reconstruída ao longo de tantas gerações, superpostas, mas entrevistas pelas frestas que conectam a cidade antiga ao mar de sempre, como o que explode aos nossos olhos quando chegamos à Praça Castro Alves, e vemos todo aquele conjunto de águas aos pés do poeta, como a regar os seus ossos que jazem sob o monumento (essa vista é particularmente bonita do alto do Espaço Cultural Unibanco - Cine Glauber Rocha, que eu recomendo). Seguindo pela rua principal, entro no beco do Berinjela e me deparo com...grades. Era sábado, quase quatro horas e ele estava fechado. Bom, decepções à parte, não desanimei e parti para a Praça Municipal, de onde apreciei aquela bela vista da Baia de Todos os Santos. Diante daquela paisagem, refleti sobre o próximo rumo. Quando me virei, a resposta lá estava: o Palácio Rio Branco. Aquele construção imponente em frente à Prefeitura, na qual só tinha entrado por ocasião de um lançamento promovido pela professora Débora Nunes (outro post, com certeza!!), porém à noite. Lá estava de portas abertas para mim e nele penetrei como os diversos turistas que já invadem a cidade. Lá, além de apreciar a bela arquitetura, fui a uma das varandas e me deparei com uma vista inesquecível. De frente para um dia belíssimo, um céu de azul impactante, em perfeita sintonia com o azul do mar, debrucei-me sobre a balaustrada e pude imaginar como, há séculos atrás, a fina flor da aristocracia baiana deleitava-se como aquela vista. Realmente vale a pena ser vista por todos, como convém aos nossos tempos democráticos. Em seguida, ainda pude apreciar, em outra sala do palácio, uma exposição sobre os governadores da Bahia (pois ali era a sede do governo do estado) muito interessante, onde obras volumosas dão, por exemplo, a dimensão intelectual de Luís Vianna Filho. Dali, intencionando ir até o Largo do Carmo, atravessei a Praça da Sé e o Terreiro de Jesus, adentrando em seguida o Largo do Pelourinho. Mas quando cheguei lá embaixo e encarei a ladeira em direção ao Santo Antônio, admito que desisti. Novamente em meio às várias alternativas de destino possíveis para quem não tem nenhuma linha de chegada prévia, pensei: "Pôr do Sol no café da Aliança Francesa." Sem tempo a perder devido à distância e ao horário (condicionado à velocidade do sol, bem mais poética que a velocidade da luz, apesar de conceitualmente tão próximas), pus sebo (de outro tipo, menos cultural e mais metafórico) nas canelas e pedi ajuda a todos os orijás para subir de volta a ladeira do Largo do Pelourinho. Atravessando de volta a Praça da Sé, não pude deixar de notar a Cruz Caída, de onde também se tem uma bela vista da Baía. Fui até lá e me vi dentro de outra cena inusitada e preciosa. Lá, um jovem com uma longa trança loura tocava violão em meio ao cenário, que contrastava a brancura do piso, o verde das copas das árvores e o azul do céu. A música, algo entre o flamenco moderno e o barroco medieval, me encantou e lá permaneci, sentado nos degraus da escadaria feita de arquibancada por mais alguns interessado. Após uns vinte minutos, pus algumas moedas no chapéu daquele jovem músico e o imaginei, tocando nas mais diversas praças do mundo (Buenos Aires, Barcelona, Paris), acompanhando apenas do violão, do pequeno amplificador, e tendo como sustento apenas o aplauso incerto da sua arte. Novamente em movimento, preparo-me para subir a Carlos Gomes, quando me lembro do Centro Cultural da Caixa. Sempre com boas exposições, desta vez não foi diferente. Lá passei algum tempo apreciando uma bela exposição de fotos e videos sobre o Kuarup, o tradicional ritual dos índios do Xingú, registrando o trabalho dos irmãos Villas-Boas. Das fotos e histórias alí expostas, uma me impressionou sem um porquê específico: a foto de um índio andando, impávido, como que em direção ao seu destino, tendo ao fundo uma enorme oca de palha. Essa certeza do homem primitivo diante do seu destino, uma certeza que está além de toda a inteligência do homem moderno, que lutou para se livrar do julgo de um deus que lhe definia o lugar no mundo, e que agora enfrenta, lado a lado, o peso da responsabilidade sobre seu futuro e o vácuo de consciência diante dele. Essa certeza ancestral (e sua superioridade em relação às previsões precárias que estão ao alcance da nossa inteligência terrenamente tecnológica) é mostrada de forma magistral na cena final do filme Koyaanisqatsi (que mostra a decolagem e posterior explosão da Challenger, pontuada pela música brilhante de Philip Glass). A superioridade da nossa raiz ancestral sobre nossas próteses artificiais (do pensamento - computador; do corpo - as máquinas motrizes; ou até da alma - as religiões) está tão impressa naquela foto quanto nesta cena, cujo filme foi indicação da colega Ana Guerra, que integra meu panteão de colegas de trabalho memoráveis. Saindo do Espaço Cultural da Caixa, e seguindo pela Carlos Gomes em direção à Ladeira da Barra, onde fica a Aliança Francesa passei pela Rua do Cabeça, onde, inadvertidamente, achei que era a entrada para chegar ao Museu de Arte Sacra, outro lugar que merece visitação constante. Porém, me enganei e acabei saindo no Largo Dois de Julho. Atravessei o largo reconhecendo naquele também um lugar que tem toda uma atmosfera particular. Lembra um microcosmo, um cisto com vida própria inserido no organismo caótico da cidade. Dalí segui ainda pela Carlos Gomes, quando passei pelo Largo dos Aflitos. Novamente a lembrança da bela vista do mirante dos Aflitos atraiu meus passos. Lá fiquei e pude aproveitar bastante daquela vista, enquanto, atrás de mim, na pequena igrejinha ali localizada, uma missa transcorria, lembrando o contraste entre a natureza ilustrada por aquela baía e a cultura secular dos rituais católicos, me perguntando qual das duas seria uma obra mais digna da assinatura do divino. Dali segui, passando pelo Palácio da Aclamação, onde esperava também fazer uma parada para apreciar suas exposições. Porém, o mesmo estava fechado. Atravessei o Corredor da Vitória, vez ou outra apreciando alguns dos seus prédios de arquitetura imponente (ou extravagante, como a Torre Barcelona, um dos orgulhos da EDEPRIMA Empreendimentos, aos quais deve se juntar o hotel de alto luxo que promete se instalar na antiga sede do Jornal A Tarde. Da EDEPRIMA guardo algumas lembranças de um trabalho que fiz, a convite do colega João Pedro, referente a um investimento no município de Esplanada. Lá conheci figuras interessantes como o Jenner, o Érico Mendonça - atual coordenador do Plano de Desenvolvimento do Turismo Sustentável de Salvador-, entre outros). Chegando a Aliança Francesa, ainda havia tempo quando adentrei ao ambiente do seu bem localizado café e pude apreciar o belo pôr-do-sol. O deleite só não foi maior pois, sentei e durante todo o tempo que lá estive, não me foi oferecido sequer o cardápio para que eu pudesse, como deveria ser o objetivo de toda casa comercial, consumir. Creditando isso ao hábito que outros devem ter de ir até lá apenas para ver o fim do dia, e não necessariamente desfrutar dos crepes, especialidade da cozinha francesa, sai de lá com a intenção de finalizar o dia e retornar ao Center Lapa. Porém, passando pela rua que dá acesso à Graça, lembrei do café que fica no Museu Rodin, sobre o qual li uma boa referência na revista Muito (a qual já me referi aqui). Hora de mais uma experiência inédita. Para lá fui, e, após passar por réplicas que mostram toda a destreza na arte da escultura que fizeram a grandeza merecida de Rodin, pude, enfim, desfrutar um belo cappuccino (minha bebida preferida e que, certamente merece um post. Afinal, que outra bebida você conhece que é protagonista de um filme inteiro, como foi o capputino tão desejado por Bruce Willis em Hudson Hawk – O Falcão Está à Solta?) acompanhado por uma deliciosa torta. Depois, retornei pelo Corredor da Vitória, mas, temendo o deserto que deveria estar a Avenida Sete àquele horário (19:00) de um sábado, fui até a frente do Teatro Castro Alves e peguei um ônibus, saltando em frente ao Center Lapa. Quando me dirigia para a entrada, me ocorreu uma última visita. Confirmando que o shopping funcionava até as 21:00, subi a ladeira ao lado do Center Lapa e fui para um barzinho em frente a Biblioteca Central (são vários, eu sei. Refiro-me ao que fica num centro comercial, onde tem vários lojas.) Lá, enquanto violonista e baterista arrumavam seus instrumentos, pedi um guaraná e uma porção de bolinhos de carne do sol que, para minha surpresa devido às minhas últimas experiência com bolinhos desse tipo em bares desse tipo, estavam ótimos. E lá acabei minha “flanada” pela cidade: desfrutando meu guaraná e meus bolinhos de carne do sol, ao som do repertório de Djavan e Cia, e sob a luz da lua e das estrelas da minha cidade. Uma flanada com direito a tudo que constrói a nossa endocidade: os cinco sentidos. Seja a visão (com a paisagem natural do mar ou com a paisagem artificial da eclética arquitetura de Salvador, que vai do clássico do Palácio Rio Branco ao pós-moderno da Torre Barcelona), seja a audição (com a bela música flamenco-barroca ou com a nossa querida MPB), seja o paladar (com a torta doce e os bolinhos salgados), seja o olfato (com o cheiro do povo atulhado nos becos da cidade e com o aroma das flores dos jardins do Museu Rodin). Mas principalmente com o tato (com o tato cansado do meu pé esquerdo ou com o tato acabado do meu pé direito). Pois para conhecer a cidade, essa cidade de verdade, que é só nossa, a nossa endocidade, só assim. Só a pés.
sábado, 5 de março de 2011
Assinar:
Postagens (Atom)