quinta-feira, 21 de julho de 2011

Kripton, Willis, Albieri e Nicolelis: O que é alma? Parte I

Esse post, apesar de já decorridos vários dias, ainda está sendo escrito sob o impacto da palestra magistral de Miguel Nicolelis neste mês de julho, no Salão Nobre da UFBA, por ocasião do lançamento do seu livro "Muito Além do Nosso Eu" e do Cafê Científico na Ufba (o CC, que já promovia debates mensais na LDM da Piedade, agora, a cada três meses, promoverá debates também na UFBA). O livro, apesar do título, não é nem de auto-ajuda, nem tem temática espírita. Seu conteúdo foi resumido na palestra de certa de 1:30 e tem a ver com um mundo novo que está sendo criado na nossa frente e que nós ainda não somos capazes de ver. Mas que, de certa forma, eu antevi, em um trecho de um poema meu que está aqui no blog e que diz: "O Corpo é um Equívoco. A mente é a resposta." Nicolelis falou muito da mente, o que me levou institivamente a me perguntar: o que é alma? Ao mistura numa mesma sentença as palavras cérebro (bio), mente (psico) e consciência (sócio), resta alguma lugar para falar em alma? Não "alma" no sentido necessariamente religioso, mas em um sentido duplo: de um elán vital que nos mova em direção a alguma meta-lugar, por um lado, e de uma âncora que nos conecte à realidade, nos dando os referenciais necessários para compormos um ponto de vista a partir do qual nos desloquemos. A matriz bio-psico-sociológica poderia até ser uma primeira pista do que seria essa "realidade" à qual nos ancoramos. Mas e quanto ao que nos move? Isso pode ser reduzido/traduzido a impulsos elétricos e reações químicas? É isso que nos propomos a discutir aqui. A partir de uma rápida apresentação dos argumentos de Nicolelis, e passando por alguns exemplos pop (à maneira de Zizek), poderemos levantar alguns pontos sobre essa questão basilar da nossa existência, dentro, obviamente, dos limites de um post blogônico. Nessa primeira parte do Post, vamos fazer uma breve apresentação das idéias de Nicolelis, em particular a idéia do avatar mental.
Em "Muito Além do Nosso Eu", Nicolelis narra o caminho percorrido até tornar-se um dos mais renomados neurocientistas do mundo, sério candidato à prêmio nobel nos próximos anos. Nesse caminho, suas experiências o levaram aos estudos da comunicação entre o cérebro e o corpo. Seu objetivo não poderia ser mais nobre: possibilitar a pacientes paraplégicos a retomada dos movimentos. Identificando como o cerébro funciona (e entrando ai numa interessante discussão entre duas correntes: os locacionistas, que viam o cérebro como uma loja de departamentos, onde cada parte é responsável por uma função; e os generalistas, que viam o cérebro como uma democracia, onde todos os neurônios, com maior ou menor intensidade, participam de todas as decisões. Essa última visão, da qual Nicolelis é partidário, tem se afirmado nos últimos anos), Nicolelis buscou "traduzir" a tempestade elétrica que ocorre no cérebro, que modo a que os comandos que movem o nosso corpo possam ser transmitidos a um exoesqueleto (um esqueleto mecânico externo ao nosso corpo), que fará o papel dos nossos músculos, possibilitando a execução dos movimentos solicitados pelo nosso cérebro. Isso, por si só, já seria algo fantástico. Porém, as pesquisas de Nicolelis e outros cientistas ao redor do mundo levaram a descobertas ainda mais surpreeendentes sobre como funciona nosso cérebro. Resumindo: uma macaca foi treinada para, movendo um joystick (num mundo de tablets, falar em joystick parece algo pré-histórico), acertar, com um cursor, uma bolinha na tela do computador e ganhar uma recompensa. Enquanto isso, os cientistas registravam e decodificavam os movimentos dos impulsos elétricos transmitidos entre seus neurônios. Num segundo momento, afastaram o joystick da mão da macaca, porém os seus comandos cerebrais eram transmitidos tanto biologicamente para seus braços, quanto eletronicamente para o joystick, que continuava movendo o cursor e garantindo a recompensa. A macaca logo percebeu que movendo os braços, movia o joystick, que movia o cursor e ela continuava ganhando a recompensa. No estágio final, buscou-se isolar o fato biológico dos comandos mentais, justamente o caso dos paraplégicos, onde o comando mental não equivale a um movimento físico. Assim, prenderam os braços da macaca, porém mantiveram sua conexão eletrônica com o joystick. A macaca então percebeu que, mesmo sem mexer os braços, ela comandava o joystick, que comandava o cursor e que lhe garantia a recompensa. Enquanto os cientistas comemoravam a descoberta e tentavam aprimorar o sistema, uma descoberta magnífica ocorreu: com os braços soltos, a macaca não só comandava os movimentos do cursor quanto continuava a usar seus dois braços de forma natural! Ou seja, o cérebro da macaca não substituiu o braço biológico pelo braço mecânico. Ele incorporou mais um braço ao avatar mental do seu corpo. Na verdade o meu espanto maior vem dessa idéia do avatar mental. Ou seja, nosso corpo não é um radar sensorial que diz a nossa mente o que está ao nosso redor. Nosso corpo é uma projeção mental. Isso serve tanto para incorporar um elemento que fisicamente é externo a ele (no caso do braço mecânico da macaca) quando para extenalizar sensações que só existem na nossa mente, como na experiência em que um braço de borracha visível é estimulado simultaneamente com o braço real da pessoa, que está encoberto. Quando esse braço de borracha é esfaqueado, o corpo reage (batimentos cardiácos, pressão arterial, etc) como se fosse o braço real sendo esfaqueado. Assim, a falsidade física do braço de borracha sucumbe diante da sua "realidade" mental. O corpo é o que a mente pensa. Explicadas as idéias gerais de Nicolelis, passemos a uma segunda parte, onde discutiremos os aspectos ético-filosóficos dessa questão, com o apoio de alguns exemplos da cultura pop.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Becket, Mészarós, Chico de Oliveira e Neojibá: do inferno ao céu...

Depois de vir represando alguns post que vinham aparecendo na minha cabeça, hoje é dia de finalmente desaguá-los. Para facilitar, resolvi juntá-los num único post. Este post versará, portanto, sobre a peça "Fim de Partida", de Samuel Becket; as palestras de István Mészarós e Chico de Oliveira, nas comemorações dos 70 Anos da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas; e a apresentação da orquestra Neojibá, no TCA. Como o subtítulo do post já abrevia, é uma viagem do inferno ao céu, como se verá.


Comecemos pela peça "Fim de Partida" de Samuel Beckett. Já tinha ido a várias peças, inclusive com mais intensidade nos últimos anos, por causa de Juli que, como já disse aqui, é da "turma do teatro". Porém, ainda não tinha ido ao chamado teatro mais clássico. Já tinha assistido peças de autores conhecidos como Nelson Rodrigues ("A Serpente", com Débora Falabela) e Plínio Marcos ("Abajur Lilás", com a turma de teatro da UFBa), além de peças em formato clássico (como "Os Emanorados" com Luiza Prosérpio) e dramas (como "História de uma lágrima furtiva de cordel", baseado no romance "A Hora da Estrela", de Clarice Lispector). Mas devo dizer que nada me atingiu tanto quanto "Fim de Partida". Foi um dos pouquíssimos casos onde as minhas expectativas (sempre muito altas) foram não só alcançadas como superadas (casos semelhantes podem ser contados nos dedos, como o final de "Seven" e as intermináveis reviravoltas de "Lost"). Tinha expectativas altas por conta do autor (Beckett é um dos dramaturgos mais conhecidos da história) e por causa de atores como Harildo Deda e Gideon Rosa, presente no elenco. Pois bem. Entrando no Teatro Martin Gonçalves, fui mergulhado (durante nada menos que três horas!!!) na depressão de um mundo pós-apocalíptico, habitado por quatro almas em frangalhos. No Palco, Hamm (Haroldo Deda) guarda como único prazer espezinhar sua única companhia, Clov (Gideon Rosa) enquanto atura, muito à contragosto, os últimos suspiros de seus genitores, o romântico Nagg (Gil Teixeira) e a pragmática Nell (Maria de Souza), agora reduzidos à apenas troncos inertes guardados dentro de tambores de metal e alimentados por biscoitos e papa. Diferente de seus três "patrões", Clov é o único que ainda se mantém de pé (Hamm vive numa cadeira de rodas) e pode, com as próprias pernas, sair daquele calabouço. Mas não o faz, pois, como lembra sardonicamente Hamm, "não há para onde ir." Ao longo de três horas, onde nos é exposta toda a desesperança que um texto teatral pode descrever, o sentimento pode ser resumido nas palavras de Clov. Perguntando por Hamm o que ele via quando olhava para as paredes da sua cozinha, ele responde: "Vejo minha luz se apagar". Será que em algum momento das nossas vidas, quando pararmos para fazer um balanço sobre as nossas escolhas nessa corrida inercial para uma linha de chegada que sequer sabemos onde está, podemos nos encontrar diante de uma parede de uma cozinha qualquer, vendo a nossa luz se apagando? Esse foi o momento que mais me marcou e que me faz querer ter certeza de todas as minhas escolhas, ter certeza que a vida merece ser vivida no seu máximo e que a sua luz seja sempre fulgurante, brilhando de lembranças ricas e promessas de um amanhã ainda melhor. A luz moribunda de Clov é o inferno de que devemos todos escapar.


Na segunda parada da nossa estação, saindo do inferno, mas indo para algo não muito melhor, temos a palestra de István Mészáros na Reitoria da Ufba, abrindo as comemorações dos 70 anos da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBa. Não que a palestra tenha sido ruim, muito pelo contrário. Mészáros é o principal intérprete e atualizador da obra de Karl Marx. A sua crítica escapa aos lugares comuns e busca as razões estruturais das nossas consecutivas crises econômicas. Na palestra em questão, havia vasto material a ser analisado, em face da crise mundial de 2008 e Mészáros o fez com arguta percepção. A proximidade ao inferno a que me refiro deve-se a dois fatores: o quadro pintado por Mészáros e a solução proposta por ele. Por um lado, Mészáros atualiza a raíz estrutural das crises capitalistas, já apontadas por Marx, ou seja, o capitalismo é necessariamente insustentável. As evidências enumeradas pelo escritor, para além do que é fartamente documentado em relação à crise de 2008, buscam mostrar a voracidade inerente ao capitalismo, cujas reformas com vistas a "domá-lo" não passam de frágeis rodinhas de bicicleta para impedir um inevitável tombo. Porém, mais grave que isso, a solução proposta por Mészáros assusta pela impossibilidade: como dentro do capitalismo não há solução, a proposta é excluir o dinheiro de todas as transações responsáveis pela reprodução social! Durma com um barulho deste!! Ai fica realmente difícil acreditar numa solução ainda nesta vida...


Mas ainda há luz no fim do tunel. Se não é a luz moribunda de Clov ou a luz utópica de Mészáros, é a luz anciã mais viva do que nunca de Francisco de Oliveira, que fechou com chave de ouro as comemorações da FFCH. Diferentemente de Mészáros, que apontou suas lentes para a economia mundial, Chico de Oliveira, um dos maiores pensadores da esquerda, aprofundou o exame da economia nacional, em sua mais nova face, a do ornitorrinco. Esse estranho animal, uma das mais esdrúxulas misturas da natureza, é a materialização da hegemonia às avessas, onde o grupo que chega ao poder dedica-se justamente a aplicar o programa de governo do grupo ao qual se opunha anteriormente. Ainda que o seu comentador, o professor Jorge Almeida, tenha lembrado que o conceito de hegemonia de Antônio Gramsci descreve justamente uma situação onde quem detém o poder o faz com tanta força, que não resta aos adversários outro caminho senão aquele sinalizado pelos supostos adversários. Porém, como Chico de Oliveira defendeu, trata-se de uma idéia-força, um conceito que, ao usar o termos "às avessas", enfatiza o caso do Brasil, onde o PT foi construído sobre um programa anti-conservador, anti-liberal, anti-mainstream e passou a vida sendo pedra, no momento em que se tornou vidraça, tomou consciência de que talvez FHC, Malan e companhia não estivessem tão errados assim. Não entrarei em querelas econômicas aqui porque criei meu outro blog (neoestrategiasbrasil.blogspot.com) para discutir isso. Aqui gasto apenas minhas palavras para anunciar o meu prazer de ouvir um pensador como Chico de Oliveira, em sua lucidez e esperança irremovível no nosso povo e país.
(Como lembranças pessoais dessas duas palestras, ficam os autógrafos colhidos, com direito a registro em video desse momento com Chico do Oliveira, que com humildade luminosa, me disse: "Você ainda gastou seu dinheiro com meu livro, meu filho." Segue link:
http://www.youtube.com/watch?v=CUU0sXkWIdI


O deleite só não foi maior do que o céu ao qual chegamos na última parada da nossa viagem: a apresentação da orquestra Neojibá, na sala principal do TCA. Simplesmente maravilhoso! Se não pela perfeição da Neojibá, por duas questões minhas: seria a primeira vez que assistiria a uma orquestra completa (já assisti anteriormente no Parque da Cidade, mas com um número reduzido de músicos e instrumentos) e a minha primeira vez na sala principal do TCA. Com relação a este último aspecto, ao entrar na sala principal e sentar na frente, pensei comigo: "Nem é tão grande assim." Quando olhei para trás, o susto: a imensa arquibancada que dá ao auditório os seus 1.500 lugares. Fantástico! Pelo lado da apresentação de uma orquestra completa e dessa orquestra ser a Neojibá, de qualidade internacionalmente reconhecida, não há muito que se possa dizer em palavras. Apenas alguns elementos que me tocaram mais: a perfeita sincronicidade dos instrumentos, em especial os violinos, que eram uns vinte; os enormes bumbos, com um metro de diâmetro; o "se vira nos trinta" dos percussionistas, que mudam de instrumentos ao longo da mesma música; a importância do maestro, que eu pensava que somente dava o ritmo da música, mas que, pelo olhar permanentemente atentos dos músicos para ele, faz muito mais do que isso. Mas o momento que mais marcou a noite foi a participação do violonista Mário Ulloa, que coincidentemente também tinha feito uma apresentação na palestra de Chico de Oliveira (nas duas ocasiões, tocou "El Condor Pasa"). A junção da perfeição da Neojibá com a emoção de Ulloa, certamente nos transporta para um céu. Abaixo, uma foto desse momento inesquecível:


Assim, da luz moribunda de Clov alcançamos a luz celestial da Neojibá, numa viagem que, do inferno ao céu, me preencheu com todos os matizes da genialidade artística humana.