segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Kripton, Willis, Albieri e Nicolelis: O que é alma? Parte II

Retomando as discussões sobre as idéias de Miguel Nicolelis e a resposta para a pergunta: "O que é Alma?". Após dar um panorama sobre as idéias de Nicolelis, queria agora colocar algumas questões que se apresentaram na forma de links com outros assuntos e personagens. Cito no título desse post esses links: Kripton, Willis e Albieri. Vamos começar por Kripton. Acho que todo mundo sabe de que Kripton eu estou falando: da terra natal do super-homem. O nosso pequeno Kal-El, filho de Jor-El (interpretado brilhantemente pelo Marlon Brando, no cinema - mas o que esperar de um ator que conquista um filme aparecendo apenas nos seus minutos finais, como ele fez ao interpretar o ensandecido Coronel Kurtz em "Apocalipse Now", de F.F. Copolla), veio para a Terra (o nosso planetinha azul, que orbitava - para alegria do bebê - um sol amarelo) numa capsula espacial, lançado por seu pai por conta da destruição eminente do planeta Kripton. Pois bem, cosmo-geograficamente localizado, o que tem a ver Kripton com a questão mente-cerebro-alma, aqui levantada a partir da discussão de Nicolelis? Bom, uma das versões contadas para o fim de Kripton em uma edição especial da DC (a editora das história do SH) teria sido a ocorrência de uma rebelião de clones. Clones???... Pois é, clones. Qual era o enredo? Cada cidadão kriptoniano, ao nascer, tem uma amostra de DNA retirada e dessa amostra se produziam três clones do indivíduo. Para quê? Para, em caso de acidentes, o clone servir de "peças de reposição", sem perigo de rejeição. Pois é. Os clones ficavam em cápsulas e, quando se precisava, por exemplo, de um "bracinho", se ia lá e arrancava o do clone para colocar no original. Pois bem. Um dia, os defensores dos direitos humanos (até em Kripton tinha, tá vendo?) resolveram questionar a política dos clones como peças de reposição. A justificativa: seres humanos não podem ser meios para os fins de outros seres humanos (qualquer alusão a Kant é óbvia). Ai vem a dúvida: os clones são seres humanos? E, em última instância, a dúvida final: o que torna alguém ou algo um ser humano? Entre tantas respostas possiveis, cada uma com a sua limitação, está a posse de uma alma. Não no sentido religioso, mas no sentido de uma âncora existencial e um liame com as gerações passadas e vindouras. Fato é que os rebeldes de Kripton afirmavam que, ao se manter aqueles corpos em isolamento, era justamente essa "alma", essa "condição de seres humanos" que estavam sendo negadas. E para mostra isso, eles apresentam clones que foram gerados fora do sistema de isolamento e que, portanto, desenvolveram identidade própria, e agora lutavam pela libertação de seus "irmãos". Bom, o pau cantou e o planeta foi destruído. Assim, qual a dúvida que fica para a gente? O clone, uma cópia biológica igual a outro ser humano, pode ter uma existência plena de significado? E não me venham falar em irmãos gêmeos não, pois cada um desses foi gerado nenhum processo autônomo. Não se gerou um primeiro irmão, que depois foi copiado. No caso do clone, não. Tem-se claramente um original e uma cópia (ou várias). Ponto. Não é a mesma coisa. O que não importa dizer que ele não possa ter o status de ser humano. E o que concebe esse status? Seria essa alma que falávamos acima? Esse é o ponto. Ponto esse que nos leva a o outro link dessa história. Semana passada chegou ao fim a reapresentação da novela “O Clone”, de Glória Perez. Desta vez, por motivos mais fortes que minha vontade (com a mudança de horário da SEDHAM, chegava em casa exatamente na hora der começar a novela e acabava almoçando e assistindo) acabei acompanhando a história. Porém, acabou sendo muito interessante, pois pude acompanhar em detalhes o conflito principal da trama: a geração de um clone e os conflitos morais envolvidos nisso. Um aspecto interessante dessa celeuma (e que a conectou com a questão do Nicolelis), foi o fato do cientista que gerou o Clone, o Albieri (interpretado pelo Juca de Oliveira – o homem dos devaneios, na Band FM) ser declaradamente ateu (como Nicolelis). Em contraposição, dois dos seus amigos e confidentes são pessoas extremamente religiosas. Por um lado, o padre católico Matiolli (interpretado pelo atual “Homem Baixo” Francisco Cuoco) e, por outro, o muçulmano Ali (interpretado pelo eterno caminhoneiro Stênio Garcia). Ambos foram unânimes em condenar Albieri com base na mesma questão: ele havia rivalizado com Deus/Alah. De uma cajadada só, Albieri tinha cometido um pecado mortal (a soberba) e reprisado o pecado original de Adão e Eva ao comer o fruto da Árvore do Conhecimento. Ele, por sua vez, sem qualquer amarra religiosa, só via o avanço científico que significava a geração do clone. Um típico caso de descumprimento do princípio da precaução, que diz que, na dúvida sobre os malefícios de uma prática, ela não deve ser executada. Em outros termos, um divórcio claro entre a ciência e a ética. Coincidentemente comecei a ler hoje “Vícios Privados, Benefícios Públicos?” (Eduardo Gianetti), que começa discutindo justamente essa separação entre a possibilidade científico-tecnológica do que é possível fazer (o campo da ciência é o campo positivo do ser) e a responsabilidade ético-moral do que deve ser feito (o campo da ética é o campo normativo do dever ser). O que ocorreu no caso do Albieri foi justamente isso: um ato cientificamente viável, mas eticamente discutível. E toda a discussão ética é muito bem representada na novela, com o conflito envolvendo Lucas - o original - e Leo - a cópia (ambos, obviamente, interpretados por Murilo Benicio). Um ponto relevante para a discussão aqui se refere ao conflito de identidade. Se, por um lado, Leo, não vivendo no mesmo ambiente controlado de Lucas, acaba desenvolvendo uma personalidade distinta, mais audaciosa do que a do inseguro Lucas, por outro, ele se sente inexplicavelmente atraído por Jade (interpretada por Giovanna Antonelli), que teve um romance com Lucas. O detalhe é que ele já sonhava com Jade antes mesmo de conhece-la. E o motivo era justamente a herança genética recebida de Lucas. E ai fica a pergunta: Leo amava, enquanto indivíduo, Jade ou apenas reproduzia, enquanto cópia, o amor de Lucas por ela? Esse tema do conflito identitário dos clones é magistralmente desenvolvido no filme (baseado no seriado de animação da MTV) “Aeon Flux” (interpretada por Charlize Theron). No filme, a cura para uma doença leva a esterilidade dos sobreviventes. Sem que esses se dêem conta disso, o governo começa a clonar cada individuo que morre e implantar o embrião clonado nas mulheres que pensam estar grávidas. Assim, o ciclo se reestabelece sem que ninguém perceba. Porém, ocorre algo semelhante com o que se passou com Léo. As pessoas tem sonhos com lugares e pessoas que elas não conhecem, e as vezes, ao ver alguém na rua, a pessoa sente uma saudade que não consegue identificar o porquê (no caso, são parentes ou amigos do original que morreu). Assim, a vida de todos acaba sendo uma mentira, reencenada várias vezes. Ou não? Cada “nova vida” não é só nova no tempo, mas também no seu todo? Como cada ator, ao interpretar o mesmo personagem a cada espetáculo, é sempre o mesmo? Isso fica no ar. Por fim, o último aspecto que queria levantar acerca das ideias do Nicolelis remete ao filme “Os Substitutos”, estrelado por Bruce Willis. Neste filme, cuja abertura usa imagens dos experimentos de Nicolelis com sua macaca para mostrar a evolução do uso de rôbos controlados pelo cérebro humano, os seres humanos deixaram de viver suas vidas “em primeira mão”, uma vez que lhe é possibilitado “vivenciar” o mundo exterior às suas casas através de um robô que reproduz todos os movimentos e sensações do seu usuário. Assim, por exemplo, eu posso saltar de paraquedas tendo todas as sensações do salto. Porém, se o paraquedas não abre, quem se esborracha é o substituto, enquanto que eu estou são e salvo na poltrona da sala de estar. O enredo do filme vai discutir esse distanciamento entre as pessoas e o mundo real a partir de um assassinato de um usuário através de um ataque ao seu substituto. Ou seja, o princípio básico da segurança do uso dos substitutos (àquela altura, totalmente generalizado para quase 90% da população, que os usava desde a hora em que colocavam o pé fora de casa) tinha ido por água abaixo. Sem entrar em maiores detalhes do filme, o ponto é: por melhor que seja o sistema de reprodução das sensações e movimentos do individuo através de uma veste robótica, como prevê Nicollelis, ou através de um substituto, como no filme, é possível, no futuro, buscar reproduzir tudo o que sentimos através de máquinas? Costumo dizer que “Os Substitutos” é um “Matrix”, sem a Matrix, ou seja, todos sabem que estão interagindo com máquinas e não com as pessoas diretamente. Neste caso, temos uma vida de verdade? Estamos diante de um ser humano? Se entendermos que o substituto robótico é apenas uma roupa que recobre uma individualidade cerebral, não estaremos diante de um ser humano ao falar com um substituto? Qual a diferença do meu cérebro estar ali ou a milhares de quilômetros? Afinal, esteja onde estiver, é com ele que estamos interagindo. Então, seriamos isso: cérebros em um barril (para usar a famosa expressão de Hilary Putnam)? E para finalizar: se ao saltarmos de paraquedas com um substituto robótico que promete que sentiremos tudo exatamente como se fossemos nós mesmos a saltar (e não somos? Afinal, nosso cérebro está lá), podemos ter essa sensação por completo, mesmo sabendo que falta nela um elemento crucial, qual seja, justamente o medo de colocar sua vida em risco? A priori, eu diria que o medo é pessoal e intransferível, portanto, se salto com um substituto robótico não tenho a mesma sensação, pois sei que, se algo der errado, a minha vida não está em jogo. Porém, depois da palestra do Nicolelis e de ler o seu livro, que descreve claramente a aceleração cardíaca e toda a reação muscular de alguém ao ver um braço de borracha (que ele sabe claramente que não é o seu braço “de verdade” – será que não é?) ser esfaqueado como se fosse o seu, fico me perguntando: o que é o ser humano? Seu corpo físico? Seu corpo mental que se projeta para além da matéria? Ou seu corpo interno – sua alma – que retém o que lhe é único, seja ele um avatar cibernético ou um clone biológico? Ficam essas questões. Quem sabe um dia eu consigo responder...