Revirando antigos backups (curiosidade: o concurso da SEI resolveu aportuguesar toscamente alguns termos em inglês da área da informática: backup virou "becape" e slide virou "eslaide"), encontrei um texto que achava perdido. Uma homenagem para Eduardo Neira, grande planejador e com quem convivi durante meus anos de Fundação Ondazul. Por ocasião da sua morte, escrevi o texto que disponibilizo aqui:
"Semeando Gratidão
Por Fagner Dantas
Partiu um grande homem. Daqueles a quem haveremos sempre de fazer referência quando da escolha de dois caminhos. Mártires temos em excesso; guias, tão poucos. Incomensurável na sua força que mal cabia no pequeno corpo, agigantava-se diante das encruzilhadas, dos acúmulos de medíocres indecisões, para, com a jovialidade peralta que lhe ardia nos olhos, erguer-se sobre os nossos ombros e enxergar soluções cuja simplicidade nos fascinava. Educou gerações, abriu caminhos com a força das palavras, conquistou a admiração daqueles que o tiveram presente. E um presente era o que o doutor, o professor e o amigo Eduardo Neira Alva era para todos que tiveram o privilégio de conhecê-lo. Não vou enumerar os feitos deste que fez tanto, nem elencar os títulos, merecidos cada um. Trago apenas quatro recordações muito pessoais e por isso tão ricas para mim. Lembranças do inesquecível convite de trabalhar com ele, lembranças do orgulho de estar ao seu lado, lembranças de comungar de um de seus sonhos, lembranças de um de seus erros por mim tão apreciado. Trago aqui não mais que fragmentos, flashes momentâneos de uma vida tão intensa em grandeza que ninguém há de contar em sua plenitude; somente a ele coube vivê-la nesta condição.
O Convite
No ano de 1999, encontrava-me plenamente decidido a me dedicar exclusivamente à elaboração da minha monografia. Após um estágio de 01 ano na Secretaria Municipal de Planejamento, Desenvolvimento Econômico e Meio Ambiente, concluído em junho daquele ano, já me enredava em pesquisas bibliográficas quando toca o telefone. Do outro lado da linha, a querida amiga Mariana Mendonça, colega de bancos universitários, se mostra disposta a me fazer uma proposta de trabalho. Com a gentileza característica da nossa amizade, argumento por declinar do convite, escoimado na minha, até então inabalável, fidelidade ao projeto monográfico. Por sua vez, com a persistência das verdadeiras amizades, ela me intriga ao dizer que a proposta era irrecusável. Neste momento, já capturado pela curiosidade, abro a guarda. E ela então desfere os três golpes que me levam a nocaute: Eduardo Neira Alva. Trabalhar com o palestrante que provoca um silêncio reverencial por onde passa, ou seja, penetrar o venerável; Aprender com o mestre dos meus mestres, ou seja, beber na fonte; e Conviver com timoneiro de políticas governamentais, orientador de homens públicos e transformador da realidade, ou seja, fazer ao lado de quem já fez tanto. Ela tinha razão. A proposta era irrecusável.
Lado a lado com o mestre
Trabalhando no Projeto de Consorciamento Intermunicipal da Costa dos Coqueiros, mais conhecido como Projeto Vetor Norte, capitaneado pela Fundação Ondazul - Bahia (FOA/BA), tive a oportunidade única de, a cada terça-feira, ser agraciado com uma avalanche de conhecimentos que certamente me economizaram alguns anos de faculdade. Na mesa redonda do segundo andar do n.º 07, na Ladeira da Misericórdia, Sé, sentavam-se pessoas inesquecíveis, cujas palavras eu sorviam, insaciável, e cujas personalidades eu descobria, apaixonado. Ordinariamente sentados de costas para as três janelas da biblioteca da Fundação que emolduram uma bela vista do mar, subseqüente aos telhados dos prédios antigos do Comércio, Ronaldo Lyrio (geólogo) e Gey Espinheira (sociólogo); de frente para as tais janelas, Armando Almeida (administrador da FOA/BA) e Maria Gravina Ogata (advogada); numa das cabeceiras, Mariana Mendonça (estagiária) e Juca Ferreira (Presidente da FOA/BA); na cabeceira oposta, Eduardo Neira (arquiteto-urbanista) e eu (estagiário). Nesta composição tão eclética, cada peça parecia ter o seu lugar no tabuleiro: Ronaldo Lyrio, cujo conhecimento técnico só não é maior que o seu infatigável bom humor, sempre a rabiscar nos seus infinitos caderninhos (aos quais ele tentou, frustradamente, substituir por um reluzente palm-top), dava ao grupo o respaldo necessário para poder idealizar sem tirar os pés do chão. Gey Espinheira, um folclórico erundito, capaz de traduzir em poderosas idéias-signos horas de interminável discussão e de quem sempre podíamos esperar uma palavra de concordância (alegremente recebida pela certeza do caminho certo) ou de crítica demolidora, o que muitas vezes salvava o grupo de se perceber à deriva dali a alguns instantes. Armando Almeida, de uma cordialidade quase elizabetana, era dotado de um senso prático tão afiado que era capaz de cortar ao meio os nós górdios que enredávamos ao longo do desenvolvimento do projeto. Maria Gravina Ogata, em quem a simpatia e a amabilidade pessoais contrastavam com posições firmes e sempre muito bem fundamentadas, capazes de apontar detalhes que, caso permanecessem latentes, poderia comprometer semanas de planejamento. Juca Ferreira, de rico conhecimento acadêmico, e mais rica ainda experiência de vida, era brilhante em cada uma das suas intervenções, sempre inspirador, manifestando como poucos uma aptidão para fomentar o diálogo e exercer a liderança, sempre enxergando o futuro por sobre nossas discussões cotidianas. Mariana Mendonça, com a criatividade e a disposição que lhe são características, sempre estava disposta a, da sua falta de experiência, extrair uma visão nova e sem vícios dos diferentes problemas que se apresentavam. Eu, por minha vez, procurava me habituar àquela convivência quase mágica, tentando ao máximo estabelecer alguma compensação, ainda que ínfima, ao grupo que me proporcionava tanto aprendizado. E por fim, Eduardo Neira, o criador do conceito e o idealizador do projeto, dono da palavra final sobre cada decisão, era o “homem com um plano”, detentor de uma visão multiescalonada, capaz de corrigir detalhes sem perder de vista o todo, e, acima de tudo, de um respeito por parte de todos nós, que o reconhecíamos pela sua vasta experiência e inquestionável conhecimento. Com cada peça em seu lugar, ou seja, Ronaldo e Gravina provendo o substrato técnico, Neira e Gey discutindo as questões de fundo, Juca e Armando pondo ordem na casa e Mariana e eu jogando “nas onze”, a máquina, por diversas vezes, parecia funcionar como um relógio, ainda que alternasse entre o suíço e o paraguaio. A convivência com Neira no ambiente de trabalho era realmente inspiradora. Na maioria das vezes numa linguagem calma e cheia de paciência, outras com o fervor hereditário do sangue de um pré-colombiano Montezuma, o velho corpo vibrando com uma energia desconhecida, Neira expunha suas idéias, seus ensinamentos. Era emocionante ver alguém que já não tem mais nada a provar para ninguém, a não ser a si mesmo, entrar em discussões homéricas, amealhar argumentos das mais diversas tonalidades para enfim fazer ver o mundo tal qual ela desenhava em sua prancheta; acrecente-se, na maior de todas: a sua mente. Entre estas várias discussões, uma em especial me tocou. O tema era educação ambiental. A questão era saber qual o melhor procedimento para que pudéssemos incorporar ao nosso planejamento as visões de vários especialistas que seriam especialmente convidados para discutir o tema. Duas eram as maneiras discutidas. Ou definíamos a nossa própria visão interna de educação ambiental, apresentado-a em seguida para os nossos convidados a fim de que eles pudessem criticá-la, burilando-a à perfeição. Ou levávamos apenas o tema e, por meio da discussão, construíamos todo um corpo conceitual, sem pré-definições de qualquer gênero. Uns acreditavam que a pré-visão interna facilitaria a argumentação no momento das discussões abertas, proporcionando contribuições já amadurecidas e um aproveitamento melhor daquele grupo de excelência que certamente não haveria de se reunir novamente. Outros pensavam que a preparação de uma visão interna poderia, ao invés de otimizar, desperdiçar tempo, pois teríamos uma desgastante série de reuniões até termos nossa visão formada, para, em seguida, termos duas conclusões, ambas negativas: ou o grupo ampliado concordaria com as linhas gerais, amarrado que estava aos limites do conceito apresentado, reprimindo um momento de grande criatividade e tornando dispensável aquele esforço todo; ou o grupo ampliado utilizaria metade do seu tempo para, com suas críticas, desconstruir a visão inicial e, na outra metade, erigir um novo modelo, menos perfeito do que aquela que poderíamos ter ao final de uma discussão do zero desde o início. Foi quando Armando Almeida, ao explicar a um dos integrantes do grupo que não havia estado presente na reunião anterior que deu início à discussão, disse a frase que ficou gravada em minha mente: “Acontece que eu e Juca defendemos o início da discussão sem prévias definições quanto Fagner e Neira defendem que deveríamos construir primeiro uma visão interna para então podermos levá-la para a discussão”. Não tenho certeza se estas foram as palavras exatas ditas por Armando, mas o essencial está ai. Tive, no momento em que as ouvi, a plena sensação do que elas significavam para mim, talvez por ingenuidade, talvez pelo projeto pessoal de um dia estar ao lado destes monstros sagrados. E ali estava eu, cerrando fileiras com nada menos que Eduardo Neira Alva. Devo admitir que aquela sensação perdurou por vários dias, e, principalmente, teve um grande efeito prático para mim e para o projeto, pois dali em diante tornei-me mais seguro, mais disposto a apresentar e defender idéias. No fundo, acredito que esta sensação ainda esteja comigo até hoje. Ainda posso vê-lo ao meu lado, sorriso cúmplice e tapinha nas costas. Acredito que esta seja a herança das boas companhias e espero carregá-la por muito tempo.
Compartilhando sonhos, um dia inesquecível
Um dia fui comunicado de que Neira estava com um projeto novo na cabeça. Porém, não fui comunicado por ele, mas por colegas que trabalhavam com ele em outro projeto na Caires de Brito Consultoria Ambiental. A Caíres, como era mais conhecida, era comandada por Ronan Caíres de Brito, homem de conhecimento robusto e tenacidade inquebrantável, com quem tive o prazer de trabalhar na elaboração do Plano Diretor Urbano de Ruy Barbosa. Abro aqui um pequeno parênteses. Nesta oportunidade pude compartilhar das discussões travadas na sacada do prédio da Caíres, que dava para a Ladeira da Barra (local certamente mais produtivo que o lado oposto, de deslumbrante vista para o mar, como lembrou o amigo e advogado Luís Portela que, levado por mim a Caíres para participar do projeto, declinou do convite e me deu a chance, que agarrei com unhas e dentes, de produzir meu primeiro produto técnico individual: o cenário normativo-institucional de Ruy Barbosa), e era freqüentado por micos que passeavam constantemente nas árvores que emolduravam a sacada. Ali, com Ronan e os demais companheiros de equipe, aprendia muito com as discussões travadas, destacando-se nestas discussões outras três figuras já notórias e significativas para mim: Marúsia Rebouças, socióloga, sempre com uma interferência sóbria e cheia de autoridade, tinha uma amistosidade que tornava as reuniões mais leves; Juca Gonçalves, arquiteto, era o tipo de pessoa que de tanto ouvirmos falar, achamos que é exagero, o que, naquelas tardes, ela provava que não era ao apresentar, sempre com uma visão pragmática, muitas sugestões rapidamente absorvidas pelo grupo; e Roberto Cortizo, arquiteto, de vasta experiência e bom humor incomparável, sempre disposto a mostrar, através de metáforas jocosas, falhas de argumentação ou novas soluções para os problemas que surgiam ao longo do projeto. Na Caíres, em momento anterior a este, trabalhavam, além de Ronan e Neira, três grandes amigos: João Pedro (companheiro leal e sempre irradiando alegria por onde passava), Ana Paula (um cérebro brilhante e um sorriso inesquecível) e Francis (de fulgurante presença, seja na mesa de reunião ou na roda de amigos). Foi através deles que fiquei sabendo que o Dr. Eduardo Neira pretendia reunir um grupo de jovens para discutir questões urbanas de modo a produzir um conhecimento novo, concretizado na forma de textos e quem sabe um livro, pautado na experiência de Neira e na jovialidade, experimentalismo e criatividade destes jovens já envolvidos no fazer diário da planejamento urbano. A notícia atingiu-me com um misto de alegria e frustração. Alegria por estar surgindo uma oportunidade tão fantástica, de poder não só discutir, sem nenhum interesse que não a ampliação do conhecimento, as questões que tanto me fascinavam com colegas que eu tanto admirava e ainda por cima com a supervisão de um mestre inigualável como Eduardo Neira e, mais importante, por iniciativa dele e não por insistência de um bando de fedelhos curiosos como nós, ou melhor, ele queria este grupo justamente por ser um bando de fedelhos curiosos e promissores. Por outro lado, a frustração de não saber se eu estava ou não neste grupo, afinal, sabia-se da idéia, mas não quem seria escolhido para participar do grupo e freqüentar as cobiçadas reuniões. Os dias de angústia se acumulavam, até que finalmente veio a notícia tão esperada. Foi convocado a ir a casa de Neira para lá passar o dia com ele e outros colegas a fim de discutirmos a possível formação do grupo de discussão. Aquilo era realmente um sonho tornando-se real. Na chegada a casa de Neira, acompanhado pelos já citados João Pedro, Ana Paula e Francis, além da inseparável Mariana e de Thiago, outro membro da Caíres, fomos recebido pelo mestre. Não posso descrever com exatidão as sensações dos meus colegas, mas eu estava maravilhado. Lá estava, num lugar deslumbrante, na companhia de diletos colegas, sob os auspícios de um ilustre intelectual a quem eu tanto aprendera a admirar, num dia totalmente ensolarado e dedicado às discussões urbanas. Era como estar na Academia, de Platão, ou no Liceu, de Aristóteles. Embebidos pela presença de Neira, passamos a manhã à beira da piscina. Discutimos o que o mestre tinha em mente. Neira dizia que achava interessante agregar um pouco das nossas impressões novas sobre as velhas questões que ele conhecia tão bem. Por outro lado, ela declarou-se interessado na formação do urbanista que estava nascendo no Brasil, na UNEB. Neira já havia dado palestras na nossa universidade, e nutria relações profissionais e pessoais tanto com seus alunos, como aqui já ilustramos, quanto com seu corpo docente, a exemplo da professora Débora Nunes, notável e nacionalmente reconhecida pesquisadora das questões ligadas à habitação e à participação popular. Interessava particularmente a Neira a interdisciplinariedade do curso e a diferença que isto poderia trazer nos momentos de avaliação da problemática urbanística. A partir destas discussões iniciais, se desenhava na mente do mestre o formato daquela equipe e daquelas reuniões. Uma das atividades pretendidas por Neira dizia respeito a outra novidade instigante para ele: a informática. Ele estava fascinado com as possibilidades de software de simulação como Civilization e SimCity. Era sua intenção que iniciássemos uma série de simulações com tais jogos, testando teorias e colhendo resultados, imprimindo um arcabouço científico ao que era visto até por alguns de nós como mero divertimento. Era esse o meu caso, que havia passado todo um semestre jogando SimCity no bojo de uma disciplina acadêmica, sem conseguir distinguir aquilo de uma partida de Pac-Man. Para Neira, no entanto, aquela era uma forma nova e eficiente de testar teorias urbanísticas. Quando ele expressou sua vontade de utilizar esse programa, de imediato me veio a cabeça meu grande amigo Alexandre Caramelo, cuja voracidade com que se agarrava a uma nova obsessão, seja ela científica ou não, tornou-se conhecida em toda a UNEB. Uma dessas obsessões era justamente o SimCity, o qual ele dominava como poucos, construindo cidades que mal cabiam dentro do laboratório de informática, enquanto eu não conseguia passar dos dois quarteirões. Sem dúvida se o SimCity viesse a ser uma das atividades do grupo de Neira, o velho Caramelo seria uma aquisição indispensável. Após estas conversa inicial, Neira nos convidou para um passeio na praia, a qual até então eu não virá. Ao invés de ir para a entrada da casa onde estavam os carros que, pensava eu, nos levariam à praia, Neira nos conduziu para os fundos da casa onde, ao deslizar duas portas de vidro, descortinou uma das mais belas praias do Litoral Norte a menos de 20 passos. Partimos então para uma caminhada na qual as amabilidades deram o tom. Neira falou da prática de Pilates, que o havia ajudado na correção da postura, falado sobre suas experiências de vida, as viagens que fizera. Foram momentos que, mais do que na memória, ficaram profundamente guardados no coração. Na volta, as despedidas, que eram meros “até breves”, acabaram, por esta força estranha e muitas vezes injusta que é o destino, por se tornar um grande “adeus”. Saímos de lá com planos e idéias que restaram não realizados. Porém, as lembranças daquele dia, estas ficarão para sempre. Um dia onde pudemos não só desfrutar de uma mente brilhante, mas principalmente pudemos, cada um de nós, ser tocado pela abnegação daquele que, além de intelectual notável, mostrava-se detentor de um coração aberto e de uma alma hospitaleira. Como uma árvore mais velha e mais sábia, Neira queria espalhar as sementes ao seu redor, não para que estas apreciassem a sua grandeza, mas para que ele pudesse, ao dar vida a uma nova geração, revigorar-se na certeza de quão significativa estava sendo a sua existência perante o próprio tempo, do qual então se libertava pela força de suas criações. Naquele dia, compartilhamos desse desejo que ele trazia no peito. Seu sonho, e acredito que aqui posso falar por todos que dele participaram, tornou-se latente em cada um de nós. E se a cada reunião intelectual, a cada encontro de discussão destas questões que são o substrato do trabalho do urbanista, eu me sinto imensamente contente, certamente é porque elas reacendem as lembranças tão caras daquele dia inesquecível.
Um certo Juarez
Ao terminar este enlace de lembranças, falo aqui de um erro de Neira. Pode parecer estranho que num texto que se propõe uma homenagem, se conclua com uma falha, ainda mais quando estamos diante de um homem com uma tal desproporção entre erros e acertos ao longo de sua vida. Mas, tal qual o convite que iniciou este texto, esta se trata de uma lembrança personalíssima e particularmente engraçada. Lá pelas tantas, com o avançar dos trabalhos do Projeto Vetor Norte, Neira desenvolveu um estranho hábito que, no começo foi mal entendido e depois acabou sendo solidariamente ignorado por todos nós, principalmente por mim, alvo do súbito e posteriormente freqüente lapso. Sem nenhuma razão especial, Neira começou a se referir a mim como Juarez. “Juarez pode ver isso”; “Não vamos nos preocupar com os termos, pois depois Juarez dá uma arrumada no texto”; “Ainda acho que a posição de Juarez é mais coerente”. Se no início a surpresa tornava difícil a comunicação e nos obrigava a corrigi-lo para continuarmos a discussão, com o passar do tempo a freqüência com que ela acontecia acabou por tornar a correção mais incômodo que solução. Destaque-se que estas correções nunca partiam de mim, que sempre sabia de quem ele estava falando pelo contexto da frase, mas de Armando e principalmente de Juca. Neste sentido, era particularmente engraçado observar a expressão de dúvida de Juca, que já aquela época (bem antes, portanto de ser o atual Secretário-Executivo do Ministério da Cultura) tinha várias ocupações e às vezes se esquecia de que aquilo já havia acontecido outras vezes. Ao ouvir a menção a um tal de “Juarez”, Juca olhava de imediato para Armando. Este, já sabendo do que se tratava, apontava para mim. Juca ao me olhar encontrava minha melhor expressão de “Sou eu mesmo, deixa pra lá”. Com o avançar do projeto, o tal de “Juarez” volta e meia aparecia, trazendo descontraídas risadas para as nossas reuniões. Risadas que o próprio Neira compartilhava, primeiro sem saber porque, depois reconhecendo o próprio erro. Erro que agora, olhando em perspectiva, uma perspectiva que só a ausência pode proporcionar, torna-se mais um motivo de saudade. Que bom se o velho Juarez pudesse aparecer novamente, com incumbências mil, respondendo sempre aos comandos do velho mestre. Tenho saudades de Juarez. Mas tenho ainda mais saudades do velho mestre. Tenho saudades de tudo que Neira ensinou, de tudo que Neira representou para nós, jovens aprendizes de planejador. Mais que um intelectual de conhecimento refinado e sotaque proeminente, Neira era uma inspiração a todo aquele que quer se dedicar a um sonho.
Pouco antes de concluir meu período de estágio na FOA/BA, Neira nos comunicou que havia sido convidado para planejar uma nova cidade, a partir do zero. Diante de tão imenso desafio, Neira se mostrava plenamente cônscio da sua capacidade, encarando-o como mais um trabalho, mais um feito para a sua posteridade. Essa forma de encarar os obstáculos, considerando-os não insuportáveis, mas, pelo contrário, insubstituíveis para dar sentido a vida, até hoje se encontra latente em todos que privaram da sua companhia. Ainda posso vê-lo, sorriso aberto no rosto largo, um gesto curto de despedida ao entrar no carro e partir para mais um dia construindo o futuro. Um futuro que certamente agora ele vê construído por nossas mãos, pelas mãos de quem ele apoiou, ensinou e incentivou. Um futuro que, agora, todos nós temos a responsabilidade de tornar merecedor da sua herança.
quinta-feira, 20 de dezembro de 2012
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