Novamente com uma mãozinha do meu grande parceiro de reflexões, Ruy Leal, acabei desenvolvendo, em resposta a um e-mail dele sugerindo a leitura de um artigo de Ferreira Gullar expressando suas dúvidas quanto ao status de arte de alguns exemplares da chamada "arte contemporãnea", algumas reflexões sobre uma das questões mais basilares da existência humana e com a qual tenho sempre me confrontado, ainda mais agora com meu projeto pessoal "Imersão Cultural 2013". Segue minha resposta a ele:
"Ruyzito, Bela reflexão de Gullar. Porém, acredito eu, um pouco autocêntrica e anacrônica. Por quê? Autocêntrica no sentido de que nega verdades relativas em face a uma verdade dita absoluta, da qual ele julga ser portador autorizado a falar em seu nome. Anacrônica porque, já há algum tempo, afirmações como "É ciência porque eu digo que é ciência" não podem causar também surpresa, haja vista a discussão em torno das abordagens científicas em torno de fenômenos espirituais ou, para não ser tão high-edge, discussões sobre o status de ciência da mecânica quântica. Toda essa discussão opõe basicamente dois tipos de pensamento extremos que, apesar de se diluirem ao longo do espectro, tem, no frigir dos ovos, que se filiar a um dos dois "times": relativistas e absolutistas. Entre os primeiros (time ao qual me filio), não existem verdades ou mentiras "a priori". Tudo existe em um contexto discursivo e, portanto, interpessoal. Assim, não é o fato de alguém dizer que algo é arte que torna aquilo arte para mim (enquanto receptor). Mas nada me autoriza a dizer que aquilo não é arte para ele (enquanto emissor). E, o mais importante, se aquilo será arte pra nós (enquanto interlocutores). O que vai definir o status das coisas é a sua extração, a posteriori, de um contexto dialogado.
Por exemplo: uma figa. Qual o seu status? um símbolo de sorte (para o crente)? Um símbolo sexual (para um turco)? ou uma demonstração de flexibilidade nos dedos (para o ateu)? A resposta será sim e não a depender do contexto dialogado, pois o turco pode ser crente (símbolo de sorte ou sexual?) ou o ateu pode ser turco (flxibilidade nos dedos ou símbolo sexual?) E assim por diante. Não precisa de muita explicação para dizer que, para os absolutistas, as coisas são o que são e somente podem ser isto. A mesma figa pode ser usada como exemplo. Tendo em vista que não há qualquer razão prática para trançarmos os dedos como numa figa, o absolutista estará satisfeito em dizer "a figa é um símbolo", pois, mesmo o ateu, ainda que considerando a hipótese difícil deste não estar imerso em uma cultura que atribua à figa algum significado especial, que já o faria reconhecer este significado, mesmo não dando maior importância a ela, observará a figa como algo anti-funcional e, portanto, atribuirá a ela um caráter simbólico, pelo simples fato de opor racionalidade (função prática) e simbolismo (função discursiva).
Agora, partindo dessa premissa que opõe relativistas e absolutistas, é claro que o discurso do Gullar é absolutista no sentido de estabelecer uma série de apriorismos para estalececer o status de obra de arte. Afirmar que a arte se caracteriza por uma linguagem única? O que dizer, por exemplo, de um show do Blue Man Group, onde se mescla o tempo todo música e imagem? Outro exemplo: Gullar colocou na periferia da arte a tal "arte perecível", porém o fez enquanto linguagem (o fato de ser perecível) ou enquanto conteúdo (deixar um animal morrer de fome e sede, como ele enfatiza no texto)? Se acaso tomássemos como exemplo as obras literárias publicadas pela Editora Eterna Cadência que tem como característica imprimir livros com uma tinta que desaparece com o tempo (numa coleção chamada apropriadamente de "Livros Que Nao Podem Esperar"). Estamos diante de uma obra perecível, porém cujo conteúdo é literatura, uma forma consagrada de arte (presente tanto na classificação sêxtupla de Hegel quanto no consagrado hepteto de Canudo). E então, Gullar? Como relativista, não possa admitir apriorismo, ainda mais em um contexto tão claramente interpessoal quanto a arte. Lembro-me de um debate sobre estetica como o grande João Carlos Salles, de São Lázaro, alguém que à época nem conhecia tanto e por quem hoje nutro imensa admiração não só pela sua reflexão filosófica de primeiro quilate (é um dos maiores especialistas em Wittgestein do país), mas pelos momentos que veem me proporcionando ao comandar os Encontros de São Lázaro. Ao defender a existência de parâmetros que permitir declarar uma obra de arte como bela ou não, não pude conter a indignação e o questionei: "Como pode algo cuja reverberação é tão íntima receber qualquer tipo de padronização? Aos apreciadores dos "Girassóis" de Van Gogh será dada a obrigação de flexionarem os joelhos diante da "Guernica" de Picasso?" A sua resposta, que para mim hoje parece óbvia, é que não se está ali falando em "beleza" como subjetividade, mas "beleza" como perfeição, como atendimento feito com o maior apuro tecnico aos cânomes de um determinado estilo artístico. Fica fácil perceber, diante da triade platônica da "busca do Bom, do Belo e do Justo", que antes Salles falava da "boa" obra de arte e não da "bela" obr de arte, à qual eu me referia em minha pergunta.
Fato é que obra de arte é tudo aquilo que, em um contexto interpessoal "desperta" algo em nós mesmo (e, mesmo que esse despertar íntimo se dê apenas na relação do observador com a obra de arte, não se pode esquecer que esta é sempre um medium no diáologo imagético entre o emissor e o receptor, o que os torna interlocutores, mesmo que deslocados no tempo e no espaço). Assim, obra de arte é toda aquela que, quando você olha para ela, ela olha pra você. E essa nem pode ser considerada uma explicação muito original, porque esta baseada numa frase do "Além do Bem e do Mal", de Nietzsche: " E se você contempla o abismo por muito tempo, o abismo também te contempla." Assim é com a obra de arte. Antes de olhar o abismo, ele simplesmente não existia (não há a priori). Após olha-lo, nada mais existe além dele. O abismo se torna você. Você se torna o abismo. É assim com a obra de arte.
Forte abraço.
Fagner
quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013
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