quinta-feira, 11 de julho de 2013

Desafios da cidade: que urbanismo? Palestra de Ana Fernandes (FAUFBA) no Café Científico.

Na última sexta-feira (05/07), na Biblioteca Central, o Café Científico promoveu a palestra “Desafios da Cidade: que urbanismo?”, concedida pela professora da FAUFBA, Ana Fernandes. Estive presente e, como sempre, foi um prazer ouvir a professora, sempre com sua postura crítica e muito bem fundamentada sobre a urbanização contemporânea, principalmente em sua faceta mercadológica, tendo Salvador e outras cidades brasileiras e mundiais como pano de fundo. Além da palestra e da oportunidade de amplo debate que se estendeu por quatro rodadas de perguntas (!!), foi bom também rever eternos mestres como Carlos Alberto Querino, colega de Prefeitura, e Maria Palácios, professora do curso de urbanismo (curso que a professora Fernandes, em sua palestra, fez questão de citar como uma exceção valorosa – e corajosa – no panorama da formação dos profissionais que lidam com urbanismo no Brasil) e também de voltar a participar do Café Científico, que desde 2006 vem promovendo debates do mais alto nível em Salvador (Miguel Nicolelis e David Harvey foram os mais inesquecíveis até agora), inclusive tendo me inspirado a realizar um evento semelhante (discussão do livro “Capitalismo de Laços”, de Sérgio Lazzarini) na mesma LDM Livraria Multicampi da Piedade, que tantas vezes sediou o Café Científico. A publicação do video sobre esse debate inaugurou formalmente o outro blog que mantenho, dedicado a questão de economia, política e administração pública, temas tratados na minha dissertação de mestrado. Segue link:
http://neoestrategiasbrasil.blogspot.com.br/2011/03/video-debate-capitalismo-de-lacos.html
Tendo em vista o excelente conteúdo da palestra da profesora Ana Fernandes, resolvi colocar aqui neste meu blog sobre urbanismo e cultura, um resumo das minhas anotações, de modo a que outras pessoas tenham também acesso às inspiradas reflexões da professora Ana Fernandes. Destaque-se que isso não é uma transcrição ipse literis das palavras da professora Ana Fernandes, mas sim o que consegui captar da sua fala.
A professora Fernandes iniciou agradecendo o convite do Café Científico e dizendo que sua apresentação estava dividida em três partes: 1) Formação do Urbanismo enquanto prática política e campo de atuação profissional; 2) Urbanismo Contemporâneo; 3) Urbanismo Contemporâneo e Salvador.

1. Formação do Urbanismo enquanto prática política e campo de atuação profissional
Demarca o início do urbanismo moderno no século XIX, ressaltando o contexto político da época (conflitos na França) e a sua interdisciplinaridade.
Afirma que o urbanismo moderno nasce com a crise da cidade liberal do século XIX, tendo Paris como referência, citando então a famosa reforma urbana implementada pelo Barão Hausmann (1851-1870). Destaca que esse período ocorre exatamente entre a revolta parisiense em 1848 e a Comuna de Paris, em 1970.
Destaca que o que havia nesse urbanismo moderno era uma utopia de cidade, ilustrada por vários profissionais, cuja inspiração comum está nas ideias de Robert Owen (que influenciou inclusive as vilas operários de Luís Tarquínio, em Salvador – Ana Fernandes criticou duramente o abandono e a parte desse patrimônio urbanístico que eram as vilas operárias). Outra “utopia urbana” estava na Cidade-Jardim, ilustrada pelos trabalhos de Ebenezer Howard, Piotr Kropotkin e Henry George. Essa ideia de cidade-jardim deu origem inclusive a uma empresa chamada “Companhia City”, que criou alguns dos bairros paulista que tem “Jardim” no nome. Destaque-se, porém, que o movimento “Cidades-Jardins” chega no Brasil, através dessa companhia, totalmente desvinculado do contexto social em que o mesmo foi criado na Europa.
Outra importante influência no nascimento do urbanismo moderno foi a Sociedade Fabiana, organização que se preocupava com a ocupação do território urbano e com as questões sociais.
Por fim, a professora destaca ainda a importância dos reformistas urbanos, que afirmavam que a ação pública era fundamental como contraponto à cidade liberal.

2. Urbanismo Contemporâneo
A professora denomina o urbanismo contemporâneo de “urbanismo corporativo”, prática hegemônica nas grandes cidades brasileiras e mundiais. Ela resulta da junção do capital imobiliário, do capital financeiro, do capital industrial e do capital midiático (marketing). Destaca que a corporação trabalha de forma paralela e articulada com o Poder Público. Essas corporações passam então a modelar a política pública de desenvolvimento urbano.
A professora então descreve quais seriam os componentes da atual ordem urbanística:

·         Planos e regras de uso e ocupação do solo;

·         Correlação e conflitos de interesses, forças e poderes.

·         Critérios de ocupação e utilização dos espaços urbanos, não só definidos nas regras formais, mas também aqueles considerados na informalidade.
Assim, poderíamos dizer que a ordem urbanística é constituída tanto pela lógica formal quanto pela lógica informal, sem esquecer, no entanto, que essas lógicas estão em uma situação de conflito de interesses mediado por regras de ocupação do uso do solo.
A professora passa a enumerar então os princípios do urbanismo corporativo que opera dentro dessa ordem urbanística:

·         Inserção competitiva do território;

·         Escala de intervenção crescente;

·         Fragmentação, em relação ao restante da cidade;

·         A peça fundamental é o “Master Plan”;

·         Uso acentuado do fundo público;

·         Endividamento do setor público;

·         Papel decisório do setor privado;

·         Produção sequenciada de normas de regulação;

·         Uso de Parceria Público-Privada;

·         Especulação imobiliária;

·         Construção de enclaves urbanos;

·         Violação de direitos;

·         Devastação ambiental;

·         Obsolescência precoce do bem construído.

3. Urbanismo Contemporâneo e Salvador.
A professora iniciou dando vários exemplos de obras em Salvador que podem ser associadas a esse urbanismo corporativo:

·         Via Atlântica;

·         Reforma de Itapagipe;

·         Linha Viva;

·         Ponte Salvador-Itaparica;

·         Enclaves urbanos, como Le Parc e Horto Bela Vista;

·         Multiplicação dos Planos Diretores (2004, 2008 e 2012).
Deu ainda exemplos da reprodução desse modelo em outras cidades do Brasil, como São Roque, perto de São Paulo, onde o empreendimento Catarina inclui campo de golfe e até um aeroporto executivo; e do mundo, como Ordos, na China, onde imensas reservas de gás fizeram o governo chinês construir uma cidade para um milhão de habitantes que permanece, até hoje, praticamente sem moradores.
Segundo a professora, esse urbanismo contemporâneo pode ser também chamado de “urbanismo-bolha” e seus modelos urbanos replicáveis, de cidades-franquias (a exemplo de Alphaville, que vem sendo implantada em várias cidades, inclusive Salvador, seguindo os mesmos parâmetros).
Ao final da palestra, foi aberto o debate, no qual fiz as seguintes perguntas: 1) Tendo em vista que o urbanismo corporativo já tem os seus princípios, quais poderiam ser os contra-princípios que devem ser elaborados em uma proposta de urbanismo insurgente contra esse urbanismo contemporâneo? 2) Na fala da professora, foi colocado que as corporações atuam em paralelo e articuladas com o Estado, moldando a política pública de desenvolvimento urbano. Tendo em vista tanto a resposta à pergunta que fiz a Giuseppe Cocco no URBBA 12 (Estado: refém ou cúmplice das corporações?), que desmistificou essa dicotomia, quanto à fala de Paulo Fábio, no mesmo evento, alertando para a importância da sociedade política (instituições como partidos, congresso, etc) frente à exaltação desmedida da sociedade civil, o fato das manifestações que tem mobilizado o país (e, nisso, tem todos os méritos) terem negado qualquer vinculação com partidos políticos é um avanço em termos de criação de uma democracia participativa, considerando uma evolução linear a partir da superação da democracia representativa ou é um retrocesso em termos de aprimoramento da democracia representativa, considerando uma evolução multidimensional que deve buscar integrar em um todo maior os avanços limitados nas diversas dimensões democráticas (institucional sim, mas também cultural, econômica, social, racial, sexual, etc)? Os conselhos das cidades seria uma forma de mediar esses dois extremos, tendo em vista que ele foi o local escolhido pelo prefeito Fernando Haddad para negociar (e/ou legitimar?) a redução da passagem de ônibus?
Sobre a primeira pergunta, a professora Fernandes afirmou que, apesar de várias insurgências e críticas ao urbanismo contemporâneo, ainda é um exercício processual pensar em termos de contra-princípios ao urbanismo corporativo. Ainda assim, ela cita quais poderiam ser alguns desses contra-princípios: 1) Fim dos condomínios fechados; 2) Disputa do Fundo Público; 3) Ampliação do conhecimento dos projetos de intervenção urbana. Com relação à segunda pergunta, a professora ressaltou a importância das manifestações e afirmou que a reação negativa à presença de partidos foi uma resposta à atual imagem que a população brasileira tem dos partidos políticos, imagem essa decorrente das ações deletérias desses partidos, Porém, reconhece também a importância da instituição “partido político”, bem como outras instituições políticas que precisam ser preservadas, inclusive para garantir a própria democracia. Por fim, disse que, apesar da importância estratégica e simbólica do Conselho da Cidade, a existência desse não é uma garantia de que haverá maior democratização das decisões de governo, haja vista o esvaziamento da pauta decisória do Conselho Estadual das Cidades, que tem sido alijado da decisão acerca de intervenções públicas com grandes impactos urbanos.