Prólogo: como nasceu a Crônica dos Anarfabetos
Uma ideia que teimava em não sair do papel finalmente ganhou vida pelas maiêuticas mãos de Ronaldo Prado Almeida. Um grupo de amigos que, a cada encontro, sempre se estendia em papos que iam horas a dentro, por todos os assuntos possíveis, da política nuclear do Irã até a entrega (ou não) da Copa de 1998. E ai, como diria Gessinger, “num desses encontros casuais”, sugeriu-se transformar esses papos em encontros mais sistemáticos, construir alguma coisa a partir disso ou, quem sabe, apenas poder desfrutar dessas conversas sem depender das circunstâncias. Várias promessas, vários adiamentos. Não se avançava, mas também ninguém desistia da ideia. De repente, as redes sociais poderiam ser a solução. Ronaldo, já assumindo a dianteira do projeto, criou uma página no facebook (“Crônica dos Anarfabetos”) e convidou os interessados na ideia. As coisas começaram ainda lentas, mas o fato de ter se tornado realidade (ainda que virtual) já era uma prova de que era possível. Depois de um tempo, tema decidido (Bossa Nova enquanto expressão cultural), primeira troca de ideias, a coisa deu uma esfriada. Teria sido um “fogo de palha”? Novamente, Ronaldo salva a pátria. Não o Ronaldo Fenômeno, que marcou dois gols no melhor (???) jogador da Copa de 2002, Oliver Kahn, mas o Ronaldo Brasileiro, que não desiste nunca, e marcou um encontrou ao vivo. Por mais que seja um otimista em relação à telemática, esse tipo de papo rolava com fluidez numa dinâmica que dificilmente poderia ter o mesmo efeito no “isolamento” dos glóbulos virtuais. O gestual, o calor do debate, os tons das vozes, tudo isso que compunha aquelas conversas se perdia nas redes. Elas são um bom suporte, mas não podem substituir a infinita complexidade da interação humana. Assim, finalmente o encontro nasceu. Nasceu no contra-pé (Klésius – o jedi da Ordem Bossanovista – que iria fazer uma apresentação e dar o respaldo técnico-acadêmico à discussão – não pode ir), mas mostrou muito jogo de cintura e não só seguiu em frente quanto foi extremamente enriquecedora para todos os participantes. Que venham outras noites anarfabetas!!
1º. Tema - Bossa Nova como Expressão Cultural.
Dificilmente seria possível reproduzir num texto livre, sem suporte de gravação e com a intenção de ser mais uma interpretação subjetiva do ocorrido do que uma fiel descrição das falas de cada um, todas as ideias, provocações, discordâncias e polêmicas que tiveram lugar nas quase 3 horas de conversa. Portanto, esse é um relato de um olhar em meio ao turbilhão do debate. Para tentar me organizar, foi itemizar alguns momentos que lembro claramente:
Questão de Partida: A Bossa Nova foi a mãe de todos o movimentos musicais brasileiros?
Essa foi uma discussão complicada por vários motivos, mas igualmente instigante pelas variâncias que ela permitiu. Primeiro, a primeira grande discussão, que durou até o final da noite, foi: o que é um movimento? Mais especificamente, o que é um movimento cultural? Surgiram várias explicações, mas defendi que um movimento (seja cultura, político, filosófico, etc) deve obedecer alguma espécie de manifesto que trace parâmetros que são eminentemente mais excludentes que includentes (um dos questionamentos de Ronaldo). Ou seja, é mais para saber quem não pertence à patota (quem está pisando fora da faixa) do que para saber quem dialoga com ela. Assim, precisa haver algum tipo de fidelidade a algo. Por exemplo, o tema da Bossa Nova é o amor e suas variações. Acaso teriamos “Bossa Nova” de protesto, desancando o governo JK? Segundo exemplo: vozes pequenas ou impotentes. Deixando os termos técnicos para os iniciados, a Bossa Nova não transita nos agudos a lá Ney (o Matogrosso), nem nos graves a lá Ney (o Gonçalves). Transita na mediocridade vocal. Uma mediocridade sublime, mas medíocre. Um terceiro e último exemplo: tudo orbita em torno do violão. Como bem dito por Rodrigo, a Bossa Nova colocou o violão em um pedestal como nenhum outro ritmo no mundo. Se o Jazz (pai inquestionável da Bossa Nova; a mãe é o samba) pode circular entre o trompete de Dizzie e Miles, o piano de Monk e Hancock ou a guitarra de Jordan e Metheny, a Bossa Nova gira em torno do violão de Gilberto, Lyra, Menescal, Leão e por ai vai (que fazer com o piano de calda de Jobin? Esconder um trambolho daquele tamanho é inviável. Vou usar a frase que usei com André: é a exceção que comprova a regra).
A discussão descambou, graças a Ronaldo, para um outro lado, meio cabeçudo, mas inexorável em qualquer discussão da cultura pós-Escola de Frankfurt: o movimento cultural é produto da mídia ou existe por si só? Coloquei que entendo que, após Frankfurt, é complicado imaginar que rotular alguma coisa como um “movimento” seja algo voluntário, espontâneo. Porém, no caso do Bossa Nova, acho mais difícil, seja porque acredito que não tínhamos uma mídia, uma indústria de marketing tão sofisticada (se bem que, como lembrou bem Renato, Carmen Miranda foi um enorme sucesso tendo sido totalmente construída pelo star system hollywoodiano). No caso do Bossa Nova, acredito que existia uma substância rica o suficiente para ser aproveitada/potencializada pela midia, mas essa substância não foi criada pela mídia (como muita “coisa” foi criada pela mídia nos anos 1980 e 1990 no Brasil, haja vista Menudos, Dominós, Polegares e por ai vai). O que não implica dizer que a mídia não é um elemento ponderado nessa equação, principalmente quando ela se fortalece. Por exemplo, os tropicalistas tinham uma relação direta e antropofágica (e não vitimizada) com a mídia televisiva, em especial programas populares, como o Cassino do Chacrinha. Por outro lado, em tempos mais recentes, de uma geração totalmente midiática, a mídia não só é considerada como é parte primordial da própria produção criativa. É o caso do Mangue Bit, o último “movimento” musical de abrangência nacional. Neste caso, não há dúvida de que a mídia foi, intencionalmente, co-criadora do movimento.
Dessa relação entre bossa nova e indústria midiátia, surgiu uma outra discussão: a Bossa Nova, que é vista com um momento paradigmático, foi efetivamente um sucesso comercial? Numa rápida pesquisa Google, achei duas referências opostas. No wikipedia, “Chega de Saudade” aparece como sendo um sucesso de vendas. Já numa matéria da revista Época, Roberto Menescal fala que a bossa nova nunca foi unanimidade e nunca vendeu bem. Dados concretos são difíceis porque o mercado fonografico só foi efetivamente consolidado, segundo outro artigo que li, em 1965, anos depois do que teria sido o auge da bossa nova.
Por fim, Ronaldo propôs um último debate: a bossa nova virou música de barzinho e está morta? Minha opinião é que, primeiro, a bossa nova ter virado música de barzinho não é nada mal (quem derá ouvir “As Bachianas”, de Villalobos, ou “A Primavera”, de Vivaldi, ao invés de “Te amo, meu bebê” ou “o kit do patrão”). Isso mostra que ela está totalmente impregnada na nossa cultura, não sendo mais coisa de “elite burguesa que fica o dia todo no bar vendo as Helôs Pinheiros da vida passarem”. Ao invés de significar a morte, o barzinho significa, pelo contrário, a eternidade. Mas acredito que Ronaldo falava de uma morte comercial. Neste caso, há que se verificar que “bossa nova” puro sangue dificilmente será alvo de um grande investimento de uma grande gravadora (algo tão em extinção quanto um velocirraptor). Por outro lado, enquanto gene matricial do nosso dna musical, a bossa nova está presente, enquanto referência, em grandes sucessos comerciais como Los Hermanos e Marisa Monte. Assim, poderíamos dizer, para finalizar: “A Bossa Nova Está morta! Vida longa à Bossa Nova!”
Assim concluo minha visão dessa noite inspiradíssima e de muito aprendizado para mim. A próxima já está marcada: dia 14/01/2014, com o tema “O que é que a (Música) Baiana tem?”, discutindo alguns dos principais ritmos que compõem a musica baiana e se essa tal música esgotou ou não o seu modelo de “sucesso”. Os ritmos e os patronos serão reggae (André), Arrocha (Rodrigo), Rock (Fagner - nessa contarei com os experts mais próximos, Axl Junior, editor-chefe e conteudista senior do blog Dr. Rock'n Roll, e também meu irmão; e Eliziel, a.k.a. Remela Jones, guitarrista (base) da ex-futura maior banda de rock do condomínio), a extinta The Platelmintos); Axé (Renato) e Porno-pagode (Ronaldo). Que venha a 2ª. Noite Anarfabeta.