quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

"Semeando Gratidão" - Uma Homenagem a Eduardo Neira

Revirando antigos backups (curiosidade: o concurso da SEI resolveu aportuguesar toscamente alguns termos em inglês da área da informática: backup virou "becape" e slide virou "eslaide"), encontrei um texto que achava perdido. Uma homenagem para Eduardo Neira, grande planejador e com quem convivi durante meus anos de Fundação Ondazul. Por ocasião da sua morte, escrevi o texto que disponibilizo aqui:

"Semeando Gratidão
Por Fagner Dantas

Partiu um grande homem. Daqueles a quem haveremos sempre de fazer referência quando da escolha de dois caminhos. Mártires temos em excesso; guias, tão poucos. Incomensurável na sua força que mal cabia no pequeno corpo, agigantava-se diante das encruzilhadas, dos acúmulos de medíocres indecisões, para, com a jovialidade peralta que lhe ardia nos olhos, erguer-se sobre os nossos ombros e enxergar soluções cuja simplicidade nos fascinava. Educou gerações, abriu caminhos com a força das palavras, conquistou a admiração daqueles que o tiveram presente. E um presente era o que o doutor, o professor e o amigo Eduardo Neira Alva era para todos que tiveram o privilégio de conhecê-lo. Não vou enumerar os feitos deste que fez tanto, nem elencar os títulos, merecidos cada um. Trago apenas quatro recordações muito pessoais e por isso tão ricas para mim. Lembranças do inesquecível convite de trabalhar com ele, lembranças do orgulho de estar ao seu lado, lembranças de comungar de um de seus sonhos, lembranças de um de seus erros por mim tão apreciado. Trago aqui não mais que fragmentos, flashes momentâneos de uma vida tão intensa em grandeza que ninguém há de contar em sua plenitude; somente a ele coube vivê-la nesta condição.

O Convite
No ano de 1999, encontrava-me plenamente decidido a me dedicar exclusivamente à elaboração da minha monografia. Após um estágio de 01 ano na Secretaria Municipal de Planejamento, Desenvolvimento Econômico e Meio Ambiente, concluído em junho daquele ano, já me enredava em pesquisas bibliográficas quando toca o telefone. Do outro lado da linha, a querida amiga Mariana Mendonça, colega de bancos universitários, se mostra disposta a me fazer uma proposta de trabalho. Com a gentileza característica da nossa amizade, argumento por declinar do convite, escoimado na minha, até então inabalável, fidelidade ao projeto monográfico. Por sua vez, com a persistência das verdadeiras amizades, ela me intriga ao dizer que a proposta era irrecusável. Neste momento, já capturado pela curiosidade, abro a guarda. E ela então desfere os três golpes que me levam a nocaute: Eduardo Neira Alva. Trabalhar com o palestrante que provoca um silêncio reverencial por onde passa, ou seja, penetrar o venerável; Aprender com o mestre dos meus mestres, ou seja, beber na fonte; e Conviver com timoneiro de políticas governamentais, orientador de homens públicos e transformador da realidade, ou seja, fazer ao lado de quem já fez tanto. Ela tinha razão. A proposta era irrecusável.

Lado a lado com o mestre
Trabalhando no Projeto de Consorciamento Intermunicipal da Costa dos Coqueiros, mais conhecido como Projeto Vetor Norte, capitaneado pela Fundação Ondazul - Bahia (FOA/BA), tive a oportunidade única de, a cada terça-feira, ser agraciado com uma avalanche de conhecimentos que certamente me economizaram alguns anos de faculdade. Na mesa redonda do segundo andar do n.º 07, na Ladeira da Misericórdia, Sé, sentavam-se pessoas inesquecíveis, cujas palavras eu sorviam, insaciável, e cujas personalidades eu descobria, apaixonado. Ordinariamente sentados de costas para as três janelas da biblioteca da Fundação que emolduram uma bela vista do mar, subseqüente aos telhados dos prédios antigos do Comércio, Ronaldo Lyrio (geólogo) e Gey Espinheira (sociólogo); de frente para as tais janelas, Armando Almeida (administrador da FOA/BA) e Maria Gravina Ogata (advogada); numa das cabeceiras, Mariana Mendonça (estagiária) e Juca Ferreira (Presidente da FOA/BA); na cabeceira oposta, Eduardo Neira (arquiteto-urbanista) e eu (estagiário). Nesta composição tão eclética, cada peça parecia ter o seu lugar no tabuleiro: Ronaldo Lyrio, cujo conhecimento técnico só não é maior que o seu infatigável bom humor, sempre a rabiscar nos seus infinitos caderninhos (aos quais ele tentou, frustradamente, substituir por um reluzente palm-top), dava ao grupo o respaldo necessário para poder idealizar sem tirar os pés do chão. Gey Espinheira, um folclórico erundito, capaz de traduzir em poderosas idéias-signos horas de interminável discussão e de quem sempre podíamos esperar uma palavra de concordância (alegremente recebida pela certeza do caminho certo) ou de crítica demolidora, o que muitas vezes salvava o grupo de se perceber à deriva dali a alguns instantes. Armando Almeida, de uma cordialidade quase elizabetana, era dotado de um senso prático tão afiado que era capaz de cortar ao meio os nós górdios que enredávamos ao longo do desenvolvimento do projeto. Maria Gravina Ogata, em quem a simpatia e a amabilidade pessoais contrastavam com posições firmes e sempre muito bem fundamentadas, capazes de apontar detalhes que, caso permanecessem latentes, poderia comprometer semanas de planejamento. Juca Ferreira, de rico conhecimento acadêmico, e mais rica ainda experiência de vida, era brilhante em cada uma das suas intervenções, sempre inspirador, manifestando como poucos uma aptidão para fomentar o diálogo e exercer a liderança, sempre enxergando o futuro por sobre nossas discussões cotidianas. Mariana Mendonça, com a criatividade e a disposição que lhe são características, sempre estava disposta a, da sua falta de experiência, extrair uma visão nova e sem vícios dos diferentes problemas que se apresentavam. Eu, por minha vez, procurava me habituar àquela convivência quase mágica, tentando ao máximo estabelecer alguma compensação, ainda que ínfima, ao grupo que me proporcionava tanto aprendizado. E por fim, Eduardo Neira, o criador do conceito e o idealizador do projeto, dono da palavra final sobre cada decisão, era o “homem com um plano”, detentor de uma visão multiescalonada, capaz de corrigir detalhes sem perder de vista o todo, e, acima de tudo, de um respeito por parte de todos nós, que o reconhecíamos pela sua vasta experiência e inquestionável conhecimento. Com cada peça em seu lugar, ou seja, Ronaldo e Gravina provendo o substrato técnico, Neira e Gey discutindo as questões de fundo, Juca e Armando pondo ordem na casa e Mariana e eu jogando “nas onze”, a máquina, por diversas vezes, parecia funcionar como um relógio, ainda que alternasse entre o suíço e o paraguaio. A convivência com Neira no ambiente de trabalho era realmente inspiradora. Na maioria das vezes numa linguagem calma e cheia de paciência, outras com o fervor hereditário do sangue de um pré-colombiano Montezuma, o velho corpo vibrando com uma energia desconhecida, Neira expunha suas idéias, seus ensinamentos. Era emocionante ver alguém que já não tem mais nada a provar para ninguém, a não ser a si mesmo, entrar em discussões homéricas, amealhar argumentos das mais diversas tonalidades para enfim fazer ver o mundo tal qual ela desenhava em sua prancheta; acrecente-se, na maior de todas: a sua mente. Entre estas várias discussões, uma em especial me tocou. O tema era educação ambiental. A questão era saber qual o melhor procedimento para que pudéssemos incorporar ao nosso planejamento as visões de vários especialistas que seriam especialmente convidados para discutir o tema. Duas eram as maneiras discutidas. Ou definíamos a nossa própria visão interna de educação ambiental, apresentado-a em seguida para os nossos convidados a fim de que eles pudessem criticá-la, burilando-a à perfeição. Ou levávamos apenas o tema e, por meio da discussão, construíamos todo um corpo conceitual, sem pré-definições de qualquer gênero. Uns acreditavam que a pré-visão interna facilitaria a argumentação no momento das discussões abertas, proporcionando contribuições já amadurecidas e um aproveitamento melhor daquele grupo de excelência que certamente não haveria de se reunir novamente. Outros pensavam que a preparação de uma visão interna poderia, ao invés de otimizar, desperdiçar tempo, pois teríamos uma desgastante série de reuniões até termos nossa visão formada, para, em seguida, termos duas conclusões, ambas negativas: ou o grupo ampliado concordaria com as linhas gerais, amarrado que estava aos limites do conceito apresentado, reprimindo um momento de grande criatividade e tornando dispensável aquele esforço todo; ou o grupo ampliado utilizaria metade do seu tempo para, com suas críticas, desconstruir a visão inicial e, na outra metade, erigir um novo modelo, menos perfeito do que aquela que poderíamos ter ao final de uma discussão do zero desde o início. Foi quando Armando Almeida, ao explicar a um dos integrantes do grupo que não havia estado presente na reunião anterior que deu início à discussão, disse a frase que ficou gravada em minha mente: “Acontece que eu e Juca defendemos o início da discussão sem prévias definições quanto Fagner e Neira defendem que deveríamos construir primeiro uma visão interna para então podermos levá-la para a discussão”. Não tenho certeza se estas foram as palavras exatas ditas por Armando, mas o essencial está ai. Tive, no momento em que as ouvi, a plena sensação do que elas significavam para mim, talvez por ingenuidade, talvez pelo projeto pessoal de um dia estar ao lado destes monstros sagrados. E ali estava eu, cerrando fileiras com nada menos que Eduardo Neira Alva. Devo admitir que aquela sensação perdurou por vários dias, e, principalmente, teve um grande efeito prático para mim e para o projeto, pois dali em diante tornei-me mais seguro, mais disposto a apresentar e defender idéias. No fundo, acredito que esta sensação ainda esteja comigo até hoje. Ainda posso vê-lo ao meu lado, sorriso cúmplice e tapinha nas costas. Acredito que esta seja a herança das boas companhias e espero carregá-la por muito tempo.

Compartilhando sonhos, um dia inesquecível
Um dia fui comunicado de que Neira estava com um projeto novo na cabeça. Porém, não fui comunicado por ele, mas por colegas que trabalhavam com ele em outro projeto na Caires de Brito Consultoria Ambiental. A Caíres, como era mais conhecida, era comandada por Ronan Caíres de Brito, homem de conhecimento robusto e tenacidade inquebrantável, com quem tive o prazer de trabalhar na elaboração do Plano Diretor Urbano de Ruy Barbosa. Abro aqui um pequeno parênteses. Nesta oportunidade pude compartilhar das discussões travadas na sacada do prédio da Caíres, que dava para a Ladeira da Barra (local certamente mais produtivo que o lado oposto, de deslumbrante vista para o mar, como lembrou o amigo e advogado Luís Portela que, levado por mim a Caíres para participar do projeto, declinou do convite e me deu a chance, que agarrei com unhas e dentes, de produzir meu primeiro produto técnico individual: o cenário normativo-institucional de Ruy Barbosa), e era freqüentado por micos que passeavam constantemente nas árvores que emolduravam a sacada. Ali, com Ronan e os demais companheiros de equipe, aprendia muito com as discussões travadas, destacando-se nestas discussões outras três figuras já notórias e significativas para mim: Marúsia Rebouças, socióloga, sempre com uma interferência sóbria e cheia de autoridade, tinha uma amistosidade que tornava as reuniões mais leves; Juca Gonçalves, arquiteto, era o tipo de pessoa que de tanto ouvirmos falar, achamos que é exagero, o que, naquelas tardes, ela provava que não era ao apresentar, sempre com uma visão pragmática, muitas sugestões rapidamente absorvidas pelo grupo; e Roberto Cortizo, arquiteto, de vasta experiência e bom humor incomparável, sempre disposto a mostrar, através de metáforas jocosas, falhas de argumentação ou novas soluções para os problemas que surgiam ao longo do projeto. Na Caíres, em momento anterior a este, trabalhavam, além de Ronan e Neira, três grandes amigos: João Pedro (companheiro leal e sempre irradiando alegria por onde passava), Ana Paula (um cérebro brilhante e um sorriso inesquecível) e Francis (de fulgurante presença, seja na mesa de reunião ou na roda de amigos). Foi através deles que fiquei sabendo que o Dr. Eduardo Neira pretendia reunir um grupo de jovens para discutir questões urbanas de modo a produzir um conhecimento novo, concretizado na forma de textos e quem sabe um livro, pautado na experiência de Neira e na jovialidade, experimentalismo e criatividade destes jovens já envolvidos no fazer diário da planejamento urbano. A notícia atingiu-me com um misto de alegria e frustração. Alegria por estar surgindo uma oportunidade tão fantástica, de poder não só discutir, sem nenhum interesse que não a ampliação do conhecimento, as questões que tanto me fascinavam com colegas que eu tanto admirava e ainda por cima com a supervisão de um mestre inigualável como Eduardo Neira e, mais importante, por iniciativa dele e não por insistência de um bando de fedelhos curiosos como nós, ou melhor, ele queria este grupo justamente por ser um bando de fedelhos curiosos e promissores. Por outro lado, a frustração de não saber se eu estava ou não neste grupo, afinal, sabia-se da idéia, mas não quem seria escolhido para participar do grupo e freqüentar as cobiçadas reuniões. Os dias de angústia se acumulavam, até que finalmente veio a notícia tão esperada. Foi convocado a ir a casa de Neira para lá passar o dia com ele e outros colegas a fim de discutirmos a possível formação do grupo de discussão. Aquilo era realmente um sonho tornando-se real. Na chegada a casa de Neira, acompanhado pelos já citados João Pedro, Ana Paula e Francis, além da inseparável Mariana e de Thiago, outro membro da Caíres, fomos recebido pelo mestre. Não posso descrever com exatidão as sensações dos meus colegas, mas eu estava maravilhado. Lá estava, num lugar deslumbrante, na companhia de diletos colegas, sob os auspícios de um ilustre intelectual a quem eu tanto aprendera a admirar, num dia totalmente ensolarado e dedicado às discussões urbanas. Era como estar na Academia, de Platão, ou no Liceu, de Aristóteles. Embebidos pela presença de Neira, passamos a manhã à beira da piscina. Discutimos o que o mestre tinha em mente. Neira dizia que achava interessante agregar um pouco das nossas impressões novas sobre as velhas questões que ele conhecia tão bem. Por outro lado, ela declarou-se interessado na formação do urbanista que estava nascendo no Brasil, na UNEB. Neira já havia dado palestras na nossa universidade, e nutria relações profissionais e pessoais tanto com seus alunos, como aqui já ilustramos, quanto com seu corpo docente, a exemplo da professora Débora Nunes, notável e nacionalmente reconhecida pesquisadora das questões ligadas à habitação e à participação popular. Interessava particularmente a Neira a interdisciplinariedade do curso e a diferença que isto poderia trazer nos momentos de avaliação da problemática urbanística. A partir destas discussões iniciais, se desenhava na mente do mestre o formato daquela equipe e daquelas reuniões. Uma das atividades pretendidas por Neira dizia respeito a outra novidade instigante para ele: a informática. Ele estava fascinado com as possibilidades de software de simulação como Civilization e SimCity. Era sua intenção que iniciássemos uma série de simulações com tais jogos, testando teorias e colhendo resultados, imprimindo um arcabouço científico ao que era visto até por alguns de nós como mero divertimento. Era esse o meu caso, que havia passado todo um semestre jogando SimCity no bojo de uma disciplina acadêmica, sem conseguir distinguir aquilo de uma partida de Pac-Man. Para Neira, no entanto, aquela era uma forma nova e eficiente de testar teorias urbanísticas. Quando ele expressou sua vontade de utilizar esse programa, de imediato me veio a cabeça meu grande amigo Alexandre Caramelo, cuja voracidade com que se agarrava a uma nova obsessão, seja ela científica ou não, tornou-se conhecida em toda a UNEB. Uma dessas obsessões era justamente o SimCity, o qual ele dominava como poucos, construindo cidades que mal cabiam dentro do laboratório de informática, enquanto eu não conseguia passar dos dois quarteirões. Sem dúvida se o SimCity viesse a ser uma das atividades do grupo de Neira, o velho Caramelo seria uma aquisição indispensável. Após estas conversa inicial, Neira nos convidou para um passeio na praia, a qual até então eu não virá. Ao invés de ir para a entrada da casa onde estavam os carros que, pensava eu, nos levariam à praia, Neira nos conduziu para os fundos da casa onde, ao deslizar duas portas de vidro, descortinou uma das mais belas praias do Litoral Norte a menos de 20 passos. Partimos então para uma caminhada na qual as amabilidades deram o tom. Neira falou da prática de Pilates, que o havia ajudado na correção da postura, falado sobre suas experiências de vida, as viagens que fizera. Foram momentos que, mais do que na memória, ficaram profundamente guardados no coração. Na volta, as despedidas, que eram meros “até breves”, acabaram, por esta força estranha e muitas vezes injusta que é o destino, por se tornar um grande “adeus”. Saímos de lá com planos e idéias que restaram não realizados. Porém, as lembranças daquele dia, estas ficarão para sempre. Um dia onde pudemos não só desfrutar de uma mente brilhante, mas principalmente pudemos, cada um de nós, ser tocado pela abnegação daquele que, além de intelectual notável, mostrava-se detentor de um coração aberto e de uma alma hospitaleira. Como uma árvore mais velha e mais sábia, Neira queria espalhar as sementes ao seu redor, não para que estas apreciassem a sua grandeza, mas para que ele pudesse, ao dar vida a uma nova geração, revigorar-se na certeza de quão significativa estava sendo a sua existência perante o próprio tempo, do qual então se libertava pela força de suas criações. Naquele dia, compartilhamos desse desejo que ele trazia no peito. Seu sonho, e acredito que aqui posso falar por todos que dele participaram, tornou-se latente em cada um de nós. E se a cada reunião intelectual, a cada encontro de discussão destas questões que são o substrato do trabalho do urbanista, eu me sinto imensamente contente, certamente é porque elas reacendem as lembranças tão caras daquele dia inesquecível.

Um certo Juarez
Ao terminar este enlace de lembranças, falo aqui de um erro de Neira. Pode parecer estranho que num texto que se propõe uma homenagem, se conclua com uma falha, ainda mais quando estamos diante de um homem com uma tal desproporção entre erros e acertos ao longo de sua vida. Mas, tal qual o convite que iniciou este texto, esta se trata de uma lembrança personalíssima e particularmente engraçada. Lá pelas tantas, com o avançar dos trabalhos do Projeto Vetor Norte, Neira desenvolveu um estranho hábito que, no começo foi mal entendido e depois acabou sendo solidariamente ignorado por todos nós, principalmente por mim, alvo do súbito e posteriormente freqüente lapso. Sem nenhuma razão especial, Neira começou a se referir a mim como Juarez. “Juarez pode ver isso”; “Não vamos nos preocupar com os termos, pois depois Juarez dá uma arrumada no texto”; “Ainda acho que a posição de Juarez é mais coerente”. Se no início a surpresa tornava difícil a comunicação e nos obrigava a corrigi-lo para continuarmos a discussão, com o passar do tempo a freqüência com que ela acontecia acabou por tornar a correção mais incômodo que solução. Destaque-se que estas correções nunca partiam de mim, que sempre sabia de quem ele estava falando pelo contexto da frase, mas de Armando e principalmente de Juca. Neste sentido, era particularmente engraçado observar a expressão de dúvida de Juca, que já aquela época (bem antes, portanto de ser o atual Secretário-Executivo do Ministério da Cultura) tinha várias ocupações e às vezes se esquecia de que aquilo já havia acontecido outras vezes. Ao ouvir a menção a um tal de “Juarez”, Juca olhava de imediato para Armando. Este, já sabendo do que se tratava, apontava para mim. Juca ao me olhar encontrava minha melhor expressão de “Sou eu mesmo, deixa pra lá”. Com o avançar do projeto, o tal de “Juarez” volta e meia aparecia, trazendo descontraídas risadas para as nossas reuniões. Risadas que o próprio Neira compartilhava, primeiro sem saber porque, depois reconhecendo o próprio erro. Erro que agora, olhando em perspectiva, uma perspectiva que só a ausência pode proporcionar, torna-se mais um motivo de saudade. Que bom se o velho Juarez pudesse aparecer novamente, com incumbências mil, respondendo sempre aos comandos do velho mestre. Tenho saudades de Juarez. Mas tenho ainda mais saudades do velho mestre. Tenho saudades de tudo que Neira ensinou, de tudo que Neira representou para nós, jovens aprendizes de planejador. Mais que um intelectual de conhecimento refinado e sotaque proeminente, Neira era uma inspiração a todo aquele que quer se dedicar a um sonho.

Pouco antes de concluir meu período de estágio na FOA/BA, Neira nos comunicou que havia sido convidado para planejar uma nova cidade, a partir do zero. Diante de tão imenso desafio, Neira se mostrava plenamente cônscio da sua capacidade, encarando-o como mais um trabalho, mais um feito para a sua posteridade. Essa forma de encarar os obstáculos, considerando-os não insuportáveis, mas, pelo contrário, insubstituíveis para dar sentido a vida, até hoje se encontra latente em todos que privaram da sua companhia. Ainda posso vê-lo, sorriso aberto no rosto largo, um gesto curto de despedida ao entrar no carro e partir para mais um dia construindo o futuro. Um futuro que certamente agora ele vê construído por nossas mãos, pelas mãos de quem ele apoiou, ensinou e incentivou. Um futuro que, agora, todos nós temos a responsabilidade de tornar merecedor da sua herança.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Relato Pessoal da urbBA12: o que vi, ouvi, pensei (Dia 1)


Ocorrido de 07 a 09 de novembro de 2012 na Faculdade de Arquitetura da UFBA, o Seminário “Urbanismo na Bahia 2012” (urbBA12) foi um raro momento de reflexão e troca de ideias entre pesquisadores locais e visitantes. O evento, cuja primeira edição ocorreu em 2011, reuniu, em suas mesas redondas e palestras, alguns dos maiores especialistas nacionais na questão urbana, seja pelo seu viés físico, econômico, social ou político. Ao lado da presença dos luminares, ocorreu também, em turno oposto, a apresentação de trabalhos selecionados pela Comissão Científica do evento e que trouxe, a partir de três eixos temáticos, as mais diversas abordagens para a apreensão da cidade e do urbano. O presente relato é eminentemente pessoal e busca reproduzir, enquanto ainda vivas, algumas memórias de momentos interesses ocorridos nesses três dias. Com o tema: “A produção da cidade e a captura do público: que perspectivas?”, o evento foi aberto com uma mesa que reuniu os seguintes nomes: Ana Fernandes (UFBA), Luiz Antônio de Souza (UNEB) e Adriana Lima (UEFS), representando as três instituições educacionais à frente da organização do evento. Em termos de fala, o que mais me chamou atenção foi a fala da professora Ana Fernandes, reconhecida por todos como uma voz crítica em relação aos mandos e desmandos que imperam nas cidades. Em sua fala, essencialmente sobre a substituição, na atividade de planejamento urbano, do Estado pelo Mercado, a professora Fernandes apresentou duas informações chocantes. A primeira, a exposição de duas fotos colocadas lado a lado. De um lado, se via uma proposta de intervenção chamada “Vetor Oeste de Expansão da RMS”, feita por uma empresa privada, e que delimitava diversas áreas da Ilha de Itaparica que poderiam vir a ser ocupadas com a construção da tão polêmica ponte; do outro, a demarcação, em uma foto aérea da Ilha de Itaparica, dos perímetros formados pelas coordenadas geográficas de decretos de desapropriação de determinadas áreas da ilha. Percebia-se, com um misto de assombro e curiosidade, que os dois conjuntos de áreas eram praticamente iguais, o que leva a suspeitar que o primeiro deu origem ao segundo. Em outros termos, o planejamento privado deu origem aos decretos públicos. O outro fato trazido pela professora Fernandes foi a notícia no Jornal A Tarde de 07/11/2012 de que a empresa global de consultoria Mckinsey teria se oferecido para, gratuitamente, ajudar o prefeito eleito ACM Neto a preparar a reforma administrativa pretendida para o próximo governo. Não fosse essa uma notícia já bastante estranha, ela fica ainda mais interessante quanto se busca saber o que é exatamente a Mckinsey. Segundo a professora Ana Fernandes, a empresa é uma das mais reconhecidas no mundo no campo da consultoria, tendo escritórios em mais de 100 países. Além disso, vem auxiliando a administração municipal do Rio de Janeiro, na gestão do prefeito Eduardo Paes. Uma outra informação, que posteriormente acrescentei durante a apresentação que fiz no seminário sobre o Conselho Municipal de Salvador, é que a Mckinsey é também a empresa a que esteve (está?) associado Kenichi Ohmae, simplesmente o autor do conhecido livro “O Fim do Estado-Nação”, que prega que os Estados se tornaram obsoletos diante do poder das grandes corporações mundiais. O caso “Mckinsey” tornou-se, ao longo do seminário, o exemplo sempre citado da captura de um público (administração municipal) cada vez mais fragilizado por um privado (Mckinsey) cada vez mais poderoso. Infelizmente não pude permanecer para a segunda mesa, que congregou diversas lideranças dos movimentos sociais, porém é fundamental ressaltar a importância dessa mesa. Como bem lembrou Gabriela Pereira, membro da comissão organizadora em seu balanço sobre o evento, na mesa final, se no urbBA11, os movimentos sociais já tinham sido incorporados, por meio de uma oficina dedicada a eles, no urbBA12, o seu protagonismo avançou ao ocupar uma das mesas do evento. Os votos dela (e os meus) são para que este protagonismo continue e avance ainda mais nos próximos encontros. À tarde, a terceira mesa foi marcada essencialmente por uma ausência: a do secretário de planejamento do estado da Bahia, Jose Sérgio Gabrielli, virtual candidato petista ao governo do estado em 2014. Apesar das falas do geógrafo franco-pernambucano Jan Bitoun e do arquiteto-economista Edgard Porto terem trazido elementos interessantes ao debate da questão urbana (a importância da questão das escalas de planejamento, no caso de Bitoun, e a recorrente abordagem da cidade como “chassi”, de Porto), foi o silêncio do Estado (o que não deixa também de ser expressão da sua captura) na única mesa para a qual foi convidado que se destacou. A condição de Edgard Porto de técnico da SEI não invalida a ausência do estado, pois esse falou mais na condição de acadêmico do que de servidor. Já a ausência de Gabrielli não pode ser tomada como mera fatalidade individual, pois, institucionalmente (caso se esperasse uma fala institucional e não a do economista), deveria ter sido enviado um substituto pela SEPLAN, como ocorreu na mesa de encerramento do VIII Encontro de Economia Baiana, onde Paulo Henrique de Almeida, o substituto de então, protagonizou eletrizante debate com os outros componentes da mesa, em especial Aristóteles Menezes, presidente do Desenbahia, e Lívio Wanderley, coordenador do mestrado de economia da UFBA. Esse silêncio foi tão ensurdecedor que constou, com destaque, no novamente acertado balanço feito por Gabriela Pereira. A quarta atividade do dia foi a magnífica palestra do professor Giuseppe Cocco (UFRJ). Aqui os pontos a destacar são tantos (a discussão do conceito de “comum”, que balizou o evento, destacando a sua visão pejorativa, daquilo que não tem valor por não ter singularidade, até a visão positiva, e defendida por ele, daquilo que é coletivamente construído e, por isso mesmo, mais rico; a discussão da relação entre Estado e Mercado, na qual, em resposta a uma pergunta que fiz sobre o Estado ser cúmplice ou refém do mercado, afirmou que os dois são univitelinos, ainda que, durante os “Trinta Gloriosos” (1950-1980), o Estado tenha feito concessões, acordadas com o capital, em favor do trabalho, o que, para mim, foi resultado muito mais da “alternativa socialista” do que da boa vontade do capitalismo). Porém, o que mais ficou para mim foi sua descrição das ações da prefeitura do Rio na remoção de comunidades carentes, citando o exemplo da Vila Autódromo. Além das imagens dignas de um urbanismo fascista, com tratores derrubando a casa de quem aceitou a indenização oferecida, não importando ser esta vizinha de muro de outras casas não-indenizadas, numa clara tentativa de aterrorizar aqueles que ainda resistem, o que ele fez questão de frisar foi que, diferentemente da remoção também violenta da comunidade de Pinheirinhos, em São Paulo, que era uma ação demandada pelo privado, as ações na Vila Autódromo eram protagonizadas pelo Poder Público. E, mais que isso, por uma Secretaria Municipal de Habitação comandada por um petista e tendo como técnicos figuras que integraram as fileiras do Movimento Nacional de Reforma Urbana. É mais uma vez a “esquerda” brasileira (a qual não se pode reduzir só ao PT, mas outros partidos desta mesma linhagem, como o PC do B) em sua inesgotável “crise de identidade ideológica”, que tende a evoluir ou para a falsidade ideológica declarada, enquanto crime, ou para uma maníaco-depressão suicida, enquanto angústia.

Relato Pessoal da urbBA12: o que vi, ouvi, pensei (Dia 2)


Na manhã seguinte, infelizmente não pude estar presente na primeira rodada de apresentação dos trabalhos selecionados, fica impedido de ver o certamente belíssimo trabalho do amigo José Augusto Saraiva sobre a ponte Salvador-Itaparica. Pela tarde, além da curiosidade de ter sido lido (e aplaudido!!!) um texto de um dos participantes ausentes na mesa (Renato Balbim - IPEA), cabe destacar as falas de Rogério Proença (UFS) e Tânia Cordeiro (UNEB). O principal destaque dessas falas vem menos do que elas efetivamente continham (a dialética do “alto” e do “baixo” na topografia sócio-territorial de Salvador e a pobreza da nossa “dieta comunicacional”, por Tânia Cordeiro; a dialética do público e do íntimo na bio-virtualidade contemporânea, por Rogério Proença) e mais das suas origens. Saindo do universo dos arquitetos, urbanistas e profissionais físico-espaciais (apenas para caracterizá-los, e não para reduzi-los – principalmente o urbanista – a isto), uma era comunicóloga e o outro sociólogo, o que certamente contribuiu e muito para oxigenar o tantos debates ocorridos e a ocorrer. A terceira atividade foi também um dos pontos altos do seminário. Uma mesa redonda que reuniu Paulo Fábio, Jorge Almeida, Liana Viveiros e Maria de Azevedo Brandão (como debatedora) para discutir o tema “Política e Cidade.” O tema em si já me era instigante. A primeira fala, de Paulo Fábio, o mais conhecido cientista político baiano, impressionou pela historicidade, pela capacidade de conectar fluidamente os dois polos discursivos e pela já conhecida argumentação muito bem ancorada teoricamente. Porém, ao final, para mim (e ao que parece também para a professora Ana Fernandes, que ao final fez a pergunta que eu pretendia fazer a ele), ficou um travo amargo na boca. Principalmente pelo uso das expressões “panaceia”, para se referir às tais “práticas de gestão participativa tão desejadas e enaltecidas” e “delírio” para a ideia de “auto-governo do povo”. A primeira é, até certo ponto, comum (eu mesmo uso) para se referir a uma prática, de todo condenável, que é a de abordar as ações de democracia direta com um certo ar messiânico, de que é na sociedade civil organizada que está a única possibilidade de recuperar o que a sociedade política vampiresca sugou da máquina administrativa estatal. Já a segunda, em meio a tantas dificuldades de auto-organização popular, quiçá de uma autonomia cidadão à la Castoriadis, mas igualmente de exemplos históricos e cumulativos (que, no campo urbano, tem nos multirões um exemplo ate certo ponto trivial) e outras tentativas mais ou menos reconhecidas (como o orçamento participativo, em seus erros e acertos), me pareceu um pouco forte. Chamar de “delírio” a ideia do auto-governo, como que fechando uma porta no futuro simplesmente pela ausência de chaves no presente – caso consideremos que as experiências citadas não o são – me leva a optar pelo discurso, até bem comum hoje, da valorização da utopia enquanto leit motiv da reflexão crítica e da qual essa não pode se descolar, sob pena de imobilizar-se em um pragmatismo contábil. Não por acaso, a fala do professor Heliodorio Sampaio, que comentarei a seguir, inicia-se com a discussão do conceito de utopia e encerra-se com um clamor pela democracia direta, no que me parece ser uma trajetória hermenêutica diametralmente oposta àquela traçada por Paulo Fábio. Porém, o que mais me chocou nesse discurso inicial foi o pender a balança tão rápida e definitivamente para o outro lado, ou seja, entender que a única forma de lidar com as deficiências da ação do Estado é apostar todas as fichas no fortalecimento da sociedade política, seus agentes institucionais e, especialmente, seus componentes partidários. E ai, reconhecendo que, tal qual reconheceu a própria Maria de Azevedo Brandão, é difícil seguir o raciocínio extremamente consubstanciado do professor Paulo Fábio, a minha interpretação (provavelmente errada, mas é a única que tenho para expor aqui) é que o professor Paulo Fábio justifica um erro com outro: se é panaceia apostar todas as fichas nessa tal sociedade civil organizada (haja vista as atuais reportagens envolvendo a ONG Pierre Bourdieu), reduzir a democracia a conduite entre eleitores que votam e eleitos que governo e ponto me parece uma reverberação perigosa do que dita a Escola da Escolha Pública (Buchanan & Tullock), ou seja, uma sociedade inerte é o sinal positivo de um governo eficiente. Apesar de ainda apostar que este é um entendimento incorreto da fala do professor Paulo Fábio (sendo que sua resposta à pergunta da professora Ana Fernandes - que demonstrou, na minha opinião, também um certo incômodo com aquela aposta na mesma sociedade política que é cooptada pela Mckinsey e atua de forma fascista no Rio de Janeiro – não me possibilitou mudar de opinião), cumpre afirmar que ela se aproxima muito da fala de outro professor de São Lázaro, ao qual rendo as maiores homenagens, que é o professor Alvino Sanchez, pois, nas aulas que tive o prazer de assistir durante meu mestrado, às vezes justamente pelo debate provocado por suas opiniões, ele parecia defender a sociedade política de um eventual hegemonia da sociedade civil organizada no campo das alternativas. Fica portanto registrada essa minha (in)compreensão. Posto isso, ficou à cargo de Jorge Almeida, outro importante professor de São Lázaro, e a Liana Viveiros, arquiteta que esteve a frente da Superintendência de Habitação da Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (SEDUR), o reposicionamento da discussão do Estado em termos, de um lado, mais críticos à sociedade política e, de outro, mais realista em relação ao Estado (e, portanto, disposto a apontar não só erros como acertos na conduta deste, visão típica de quem sai da frente do quadro-negro e senta atrás da mesa da burocracia pública, eivada de vícios e “esqueletos” dos quais não se livra do dia para a noite, por mais bem intencionado que se seja). Um dos momentos mais quentes do debate (quiçá do seminário inteiro, pois esse prezou por mesas, digamos, ideologicamente “monocromáticas”) foi a discussão do conceito de hegemonia gramsciana, utilizado por Jorge Almeida para descrever o atual quadro político nacional, que reúne consenso e coerção, no que teve dura réplica de Fábio (que afirmou ser a compreensão do conceito gramsciano de Hegemonia por Almeida totalmente equivocada) e, inesperadamente para mim, igualmente dura tréplica de Jorge Almeida, citando textualmente diversas passagens da obra de Gramsci onde haveria tal descrição do conceito. A nota dissonante foi a participação da professora Maria de Azevedo Brandão, pilar da sociologia baiana e com reconhecida capacidade crítica. Tendo sido informado pela professora Maria Palácios, presença constante no evento, ao lado do colega Ednaldo, seu orientando em recente e interessantíssima monografia no curso de urbanismo (Itapagipe vista a partir de Jane Jacobs), que a professora Brandão vinha andando um tanto quanto adoentada ultimamente, não foi surpresa, ainda que tenha sido triste, vê-la fazer apenas alguns comentários soltos e sem maior impacto ao final da mesa, comentários esses que versaram apenas (e por poucos minutos) sobre a fala de Paulo Fábio. Se a minha primeira impressão foi de que a mesma estava de fato com a saúde abalada, o que afetou a sua condição de fazer um comentário mais consubstanciado sobre as três falas, ocorreu-me rever essa posição quando, participando da plateia da mesa da tarde, no dia seguinte, ela fez uma pergunta extremamente articulada e pertinente. Isso me levou a levantar a hipótese de que não foi a saúde abalada que levou a professora Brandão a proferir algumas poucas palavras sobre a fala do professor Paulo Fábio, dentre as quais se destacou a sua afirmação de que é muito difícil seguir o raciocínio dele, inclusive por ela mesma. A motivação para tão lacônica participação, em contraste com a lucidez demonstrada no dia seguinte – me passa agora pela cabeça – pode ter sido a mesma que abalou a mim e à professora Ana Fernandes: um certo desconforto com as ideias por ele colocadas, em especial sua defesa militante da necessidade de se investir na sociedade política como expressão democrática exclusiva. Bom, certamente essa mesa foi uma das que deixou mais inquietações.

Relato Pessoal da urbBA12: o que vi, ouvi, pensei (Dia 3)

No dia seguinte, tive a oportunidade de apresentar um trabalho sobre a institucionalização do Conselho Municipal de Salvador na mesa temática que tratou da regulação urbana, coordenada pela prof. Ângela Gordilho. Além do prazer de poder voltar a apresentar um trabalho no urbBA (já o tinha feito no ano anterior) e das discussões com a plateia presente, foi também prazeroso estar ao lado de dois colegas urbanistas (que poderiam ser três, caso o colega Igor Borges, que também apresentaria um trabalho nessa mesa, não tivesse se ausentado): João Pena e Andreia Soares. Os dois apresentaram interessante trabalho sobre participação popular na gestão, com destaque para um “jogo de palavras” com as expressões “política”, “politicagem” e “políticas públicas”. Prazer também em ter à mesa o colega Marcos Carvalho, que, coincidentemente, também estava na mesa em que participei, no urbBA11. Marcos apresentou interessante trabalho sobre a percepção visual nos processos de intervenção urbana. Por fim, a Dra. Maria das Graças Gondim apresentou um trabalho sobre a política de turismo na Bahia. Todos os trabalhos apresentados pareciam ter em comum uma certa “análise do discurso”: do discurso da participação (João/Andreia e o meu trabalho), da imagem enquanto discurso (Marcos) e do discurso da política de turismo (Maria). À tarde, destaca-se a mesa que reuniu Antônio Heliodório (UFBA), Sônia Rabelo (UFRJ) e Sarah Feldman (USP). Destas três falas, pouco captei da fala da Dra. Sarah Feldman. Da fala de Heliodório, além do fato de ter me custado R$ 10,00 (apostados com um colega de que Heliodorio começaria ou concluiria sua fala com a sua já tradicional ressalva de que ele “não acredita mais em planejamento”, coisa que, para minha surpresa – e pobreza – não fez), cabe destacar as duras críticas a alguns dos planos diretores que foram executados na Bahia, dentre as quais se destaca o fato do total descompromisso com a questão das densidades quanto da definição do modelo de uso e ocupação do solo presente nesses planos. O professor da UFBA também foi duro ao criticar a própria universidade e os egressos dos cursos de arquitetura e urbanismo que não estavam efetivamente preparados para lidar com questões práticas de planejamento urbano, muitas vezes estando demasiadamente focados em pesquisas abstratas. Da fala da professora Sônia Rabelo, a melhor do dia na minha opinião, caberia aqui o destaque a vários pontos: a pobreza intelectual e discursiva da Câmara de Vereadores no Rio – a qual ela integra; a pressão que o povo pode efetivamente fazer no discurso de um parlamentar quando ocupa o plenário da Câmara; etc. Porém, o que mais me chamou atenção foi o diagnóstico feito por ela das intervenções que vem sendo feitas no Rio de Janeiro, sob o comando do prefeito Eduardo Paes, e a pretexto da realização da Copa FIFA 2014 e das Olimpíadas 2016. Ela apresentou detalhes das operações envolvendo a construção da vila olímpica em imenso terreno que será praticamente doado à iniciativa privada depois dos jogos e da remoção do autódromo de Jacarepaguá, transferido para área das forças armadas e outra operação milionária e também com fortes benefícios privados. Realmente um cenário dantesco, que acopla ao panorama da coerção explícita nas remoções da Vila Autódromo, trazida por Cocco, um discurso do consenso olímpico, igualmente pernicioso, e que dá forma à interpretação de Jorge Almeida ao conceito gramsciano de hegemonia: consenso + coerção. A última atividade do evento, da qual participou a querida amiga Glória Cecília Figueiredo, figura atuante na organização do seminário, foi um grande balanço das atividades ocorridas e as perspectivas para os próximos seminários. Tendo em vista que participei do urbBA11 e pude notar uma evolução significativa neste urbBA12, a expectativa para os próximos está cada vez maior. A cidade precisa se olhar e ter sobre ela os olhares de outros. Só assim, a partir da reflexão crítica, é possível olhar em novas direções. Que venha o urbBA13!! 

segunda-feira, 14 de maio de 2012

O Naufrágio da Europa: novo Titanic ou botes à vista?

Lendo o artigo de João Pereira Coutinho sobre o resultado das últimas eleições européias, enviado pelo parceiro de reflexões Ruy Leal, visualizo como meu tema de pesquisa (neodesenvolvimentismo) é atual. O que é a eleição de Hollande senão: 1) o diagnóstico de que a crise de 2008 ainda continua forte na França; 2) o remédio de austeridade francesa, receitado pela Alemanha, foi de um amargor insuportável para os franceses; 3) a promessa de Hollande é um novo tipo de remédio que, ao invés de matar a doença de fome, busca fortalecer as defesas do corpo. Esse novo tipo de remédio se materializa numa negação do discurso (e práticas) neoliberais de remeter as construções coletivas da sociedade (e formativas do próprio processo produtivo) apenas à livre movimentação das forças de mercado. Em oposição a isso, receita-se um reposicionamento do Estado diante da economia. Afinal, se é para injetar um bilhão de dólares na GM para salvá-la da incompetência dos seus diretores nababescamente remunerados, porque não usar da autoridade legitimada democraticamente (em substituição a autoridade imposta pelo grande capital, tão autoritária quanto, mas sem nenhuma legitimidade) para fazer mais do que apenas tapar o poço sem fundo das sandices especulativas criadas pela inesgotável criatividade dos financistas (Derivativos, NINJA Loans, Subprime Mortgagees)? A discussão em torno da possibilidade de elaboração de um projeto de desenvolvimento nacional está menos nas dificuldades de, uma vez elaborado, levá-lo adiante pelas mãos das precárias lideranças políticas existentes, do que na aceitação da própria ideia da possibilidade da elaboração consciente e intencional de algo tão amplo quanto tal projeto e que precisa, contraditoriamente à sua unidade interna, refletir a diversidade do seu ambiente social. Para pensadores da linha do representante maior da Escola Austríaca, Friedrich von Hayek, é justamente essa barreira cognitiva que torna qualquer proposta de projeto coletivo um passo para governos totalitários (seu famoso “Caminho para Servidão”). Já pensadores contemporâneos como K. Sabeel Rahman, da Universidade de Harvard, entendem que a democracia pode muito bem superar esse obstáculo, uma vez que essa diversidade não pode ser igualmente totalitária, pois a vida em sociedade não comporta os extremos da liberdade negativa ou dos modernos (na clássica distinção de Benjamin Constant, notabilizada por Isaiah Berlin, com a liberdade positiva ou dos antigos). Quem vive em sociedade e tem sua vida garantida por uma série de construções coletivas como segurança, serviços públicos, urbanidade, valores compartilhados não pode se fechar em um hedonismo autista, considerando que os impostos que paga ao governo são o suficiente para comprar seu ticket de isolamento em seu universo particular (algo como “pago impostos para os políticos me governarem”, a lá Schumpeter). Obviamente defendo a tese de Rahman e a liberdade dos antigos, mais que a dos modernos, pois a liberdade como um fazer proativo e socialmente legitimado é o que está na base do neodesenvolvimentismo. Quando Hollande recusa a austeridade pela austeridade de Ângela Merkel em nome de uma ação responsável mas proativa, ele se junta a outros líderes mundiais que defendem o que o The Economist chamou este ano de “Capitalismo de Estado” (China, Brasil, Índia, Coréia do Sul, Japão e até, a partir da leitura de Rahman sobre o governo de Obama, com sua nova política de saúde e sua política industrial, os Estados Unidos). Para a extrema-direita, conservadora e porta-voz do grande capital, o “Capitalismo de Estado” é o totalitarismo previsto por Hayek Não é a toa que os republicanos adoram chamar Obama de socialista. Para a extrema-esquerda, revolucionária e porta-voz do proletariado, o “Capitalismo de Estado” é só mais um disfarce para o eterno “Comitê da Burguesia”. Sem me sentir a vontade em nenhum dos segmentos acima, “Capitalismo de Estado” para mim é a recusa do discurso neoliberal de que “o mercado resolve” e a aceitação do papel de autoridade democraticamente legitimada na condução (termo amplo que admite tanto a ação direta via empresas públicas quanto a ação indireta via mediação de pactos entre trabalhadores e empresários) de um projeto de desenvolvimento nacional. Negar tal papel ao Estado não é garantir que todos sejam tratados igualmente, sem os privilégios concedidos pelo Estado, mas sim fazer com que a competitividade intrínseca ao capitalismo selvagem vá atrás da concessão desses privilégios e desse tratamento diferenciado por todos os meios possíveis, da corrupção direta no Brasil até o lobby legalizado nos EUA. Lendo Joseph Schumpeter é possível afirmar, como faz Ha-Joon Chang, que a suposta assimetria de informações, vista pelos economistas neoclássicos como uma típica falha de mercado a ser corrigida, é, na verdade, o motor de propulsão dos ganhos diferenciados da empresas, que investem em pesquisa justamente para terem informações que seus concorrentes não têm. A competição entre as forças de mercado e a competição entre as forças políticas sempre existirá, assim como a imposição da vontade dos vencedores momentâneos dessas disputas sempre existirá. Como eu disse, a diferença entre a imposição da vontade do mercado ou do grande capital, individualizado nas empresas globais, e a vontade geral (para usar o termo de Rousseau), individualizada nos governos democraticamente eleitos, é apenas a legitimidade da segunda em relação à primeira. A vinculação direta entre capitalismo e democracia que pretende, por exemplo, Denis Rosenfeld, com base nos pensadores liberais e neoliberais, é uma peça de retórica sem maior substância. O capitalismo pode ser tão opressivo e totalitário quanto qualquer outro modo de produção (Rússia e China, que aderiram, total e parcialmente, ao capitalismo provam isso). Até porque, diversamente do que dizia Marx, o modo de produção não determina a superestrutura normativo-cognitiva, ainda que a influencie bastante. Porém, esta decorre de uma série de outras condicionantes que não estão inclusas na sacrossanta econometria dos neoclássicos como John Bates Clark e Vilfredo Pareto (a idealizada “Economia Pura”, a qual o economista português José Reis opõe a “Economia Impura”, de cunho institucionalista e muito mais realista). A depender desse conjunto de circunstâncias (e não apenas das econômicas), um arranjo sócio-político que congregue forças econômicas, políticas e sociais será, de forma mais ou menos duradoura, formatado. É a interação dessas forças e, principalmente, da força da sociedade civil, que determinará o grau de opressão que as outras duas forças poderão imprimir ao conjunto da população, sempre maioria numérica, mas ordinariamente também minoria decisória. Voltando à França, Hollande quer um governo focado em crescimento e não em austeridade. Em tempos de retranca na seleção brasileira de Mano Menezes, Hollande prefere jogar no ataque, a lá Barcelona, de Pepe Gardiola. Isso me lembra minha entrevista em São Paulo com o economista da UNICAMP, João Furtado. Nesta conversa, ele me dizia, entre uma xícara de café e outra, que a grande diferença entre o governo Lula e um eventual governo Serra foi a forma de tratar a crise de 2008. Segundo Furtado, um governo do PSDB teria seguido a cartilha-padrão de enfrentamento de crises financeiras, como a que ocorreu em 1999, ou seja, fechar a torneira, se apoiar nas reservas cambiais (infladas ocasionalmente pelo FMI) e esperar, encolhido, a tormenta passar. Em um contexto de crise financeira, como o de 2008, Lula, talvez até numa “sacada” pessoal, de sensibilidade à sua própria sobrevivência política e à manutenção dos louros conseguidos ao longo de 5 anos de lua de mel com a economia, pensou o imponderável e nadou contra a corrente, indo para o ataque com tudo que tinha em termos de sopa de letrinhas: PAC (investimentos públicos), PDP (Política Industrial), BNDES (financiamento). Com essa receita fora da cartilha da austeridade a todo custo, depois de anos colocando a estabilidade financeira como prioridade zero do governo (prioridade mantida no governo FHC e aprofundada, para desespero dos militantes de esquerda, no governo Lula), o Brasil conseguiu uma reação a crise que foi enaltecida nos quatro cantos do mundo (e claro que com o mesmo número de críticas que acusavam essa reação de ser apenas midiática, uma vez que o Brasil estaria sofrendo tanto quanto os EUA, dos homeless corporativos, ou qualquer um dos PIIGS, o que é, no mínimo, questionável). De qualquer modo, essa nova cartilha (ou devamos dizer “requentada”, pois redita coisas como o New Deal americano ou o Desenvolvimentismo asiático e latino-americano que vigorou entre os anos 1930-1970) vem encontrando novos adeptos do “defender atacando”. Hollande, pelo menos no discurso, é um deles. Se assim for, não parece ser possível reeditar a dobradinha Merkel-Sarkozi (ou “Merkozi”, como chamou a imprensa). Por outro lado, se as duas lideranças máximas da zona do Euro não perceberem o tiro no pé que é uma virar as costas para a outra, os esforços hercúleos de Konrad Adenauer e Charles De Gaulle para criar a União Européia, conforme me foram relembrados em ótimas conversas com o mestre Wolfgang Reiber no último final de semana, irão por água abaixo. Outro ponto iluminado no artigo de Coutinho, e que repercute uma outra receita de negação da austeridade pela austeridade da Alemanha, foi o avanço dos extremistas políticos, inclusive na França do socialista Hollande, com o terceiro lugar de Marine Le Pen. Na Grécia, a situação é ainda mais complexa (não só na economia, mas também na política – quem influencia quem, já que são as desavenças políticas que estão inviabilizando um governo de coalizão, sem o qual a crise econômica só tende a se agravar?), pois tanto a extrema-esquerda (com o segundo lugar do Partido Syriza) quanto a extrema-direita (com o quarto lugar do Partido Aurora Dourada, de clara orientação neonazista) saíram fortalecidos na última eleição. Esse avanço do extremismo, juntamente com outros fatores, fazem Coutinho farejar um retorno aos anos 1930, com a sucessão de crise econômica aguda; que abre espaço para discursos extremistas sem qualquer compromisso com a governabilidade, pois nunca foram vidraça, só pedra; que abre espaço para uma escalada de conflitos. Para mim, trata-se de um diagnóstico possível, porém ainda prematuro. Existe uma clara comparação entre a gravidade da Crise de 2008 e a gravidade da Crise de 1929. Isso se deve ao fato de que a Crise de 2008 é a mais parecida com a de 1929 dos últimos 35 anos, pois se equipara a esta tanto em centralidade quanto em impacto, diferentemente do Crack de Wall Street, em 1987, que ocorreu no coração do capitalismo, mas teve menor impacto na economia; e das crises econômicas dos anos 1990, que tiveram grande impacto na economia, mas ocorreram fora desse coração, visualizado na Tríade de Kenichi Ohmae (EUA-Alemanha-Japão), começando no México e se espalhando por Ásia, Rússia e Brasil para acabar no desastre argentino de 2001. Assim, dois fatores fazem com que o diagnóstico de Coutinho tenha que ser considerado: 1) as semelhanças de centralidade e impacto entre as duas crises; 2) o fato de que a Crise de 2008 ainda não foi totalmente superada (estamos em 2012!!), não dando para dizer se já chegamos no fundo do poço. Pior é se no fim do poço, ao invés de uma mola (como pregam os otimistas), nos depararmos com um fundo falso. O fato é que não dá para saber o que está depois da curva. O que Coutinho vê é a ascensão dos extremismos políticos e suas conseqüências nefastas. O quadro, para mim, é um pouco mais matizado, pois quando Coutinho apura o olhar para perceber os perigos (inegavelmente reais) do extremismo, ele perde de vista o quadro mais amplo e que emite sinais contrários. Por exemplo, a própria França, do extremismo de Le Pen, preferiu testar uma mudança menos drástica, porém significativa, elegendo um presidente socialista, o primeiro em 30 anos, desde Mitterrand (passando pela derrota de Lionel Jospin, em 2002). Na Grécia, a extrema-ESQUERDA superou a extrema-DIREITA (se é que essas diferenças são ainda tão cruciais – no caso de um partido neonazista, como o Aurora Dourada, ela é obviamente importante). Na Inglaterra, os trabalhistas liderados por Ed Miliband se fortaleceram nas últimas eleições, pressionado o neo-Tory David Cameron. Por fim, temos a emblemática vitória de Obama, que agora em 2012, tem amplas chances de reeleição contra o “homofóbico” Mitt Romney, a depender da recuperação econômica que, ainda tímida, já começa a aparecer. Se, por um lado, o extremismo político, apesar de claramente pertencer à fauna política, ainda é um animal exótico em democracias importantes, por outro podemos lançar também um olhar para os reflexos militares desses extremismos periféricos e as possibilidades de uma escalada de conflitos armados. Saindo dessas democracias consolidadas, onde essa possibilidade parece mais remota, podemos observar os países-baleias (BRIC) para saber se seu ímpeto de “botar a porta abaixo” para entrar a todo custo no primeiro mundo representa o perigo de uma sanha totalitarista. Dos BRICs, a Rússia e a China são as mais sérias candidatas ao posto de Superpotência Totalitária. Apesar de Putin (ex-KGB) representar uma direita militar, a Rússia tem eleições formais (questionáveis pelo povo, mas não abolidas pelo governo) e não há ocupação militar russa em outros países (coisa que os EUA, a quem ninguém acusa de ser totalitário, faz há anos no Afeganistão e no Iraque, liderando uma “força internacional”, ironizada por Michael Moore em “Farenheit 9/11”). Já a China, poderíamos dizer uma esquerda igualmente militar, se não é uma democracia igualitária, também não é o Reich totalitário (há trabalho desumano – que existem mesmo nos rincões do Brasil, mas não campos de concentração para indesejáveis; há influência política regional – como EUA e URSS fizeram ao longo da Guerra Fria – mas não há ocupação militar; há fechamento para o mundo – que o diga o Google -, mas não a lá Coréia do Norte, como mostra o fato da China ser hoje uma das maiores exportadoras de estudantes do mundo. Como comentou o professor do INSPER, Sérgio Lazzarini, em bate-papo após uma de suas visitas à Salvador, as universidades americanas estão cheias de estudantes chineses, como ele pode constatar na sua temporada em Harvard. Apesar de temer mais um século sinocêntrico do que um século nipônico (como se cogitou nos bons tempos do Império do Sol Nascente), já que a cultura japonesa é calcada na solidariedade e no coletivo, enquanto a cultura chinesa é muito mais isolacionista (haja vista a individualidade socialmente autista dos chineses em seu dia-a-dia urbano) e antropocêntrica (haja vista seu modelo de desenvolvimento industrial, altamente predatório, reeditando um cenário digno dos romances de Charles Dickens ou das denúncias de Friedrich Engels). Uma postura não muito surpreendente para um país cujo nome significa “Reino do Meio”. De qualquer modo, ainda vivemos em um mundo multilateral onde EUA, Alemanha, Índia, Japão e Brasil, entre outros, dividem o cenário com o dragão chinês. Pelas primeiras palavras de Hollande, a França é uma peça prestar a traçar uma outra trajetória no tabuleiro geopolítico. É por isso que, onde Coutinho enxerga um naufrágio, eu ainda visualizo alguns botes salva-vidas, seja na complexidade em si da realidade européia, que não se esgota nos extremismos políticos, seja na multilateralidade de um século que, se não é mais americano, não é totalmente chinês. Ainda não. Ainda bem.            

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Pondé e o Facebook - sapiências imanentes

O eterno parceiro de reflexões, Ruy Leal, me encaminhou um texto de Luiz Felipe Pondé, que comenta sobre o narcisismo humano a partir da popularização do Facebook (o texto pode ser encontrado no Google). Empolguei-me nos comentários, e a curta resposta se transformou no presente post.

As redes sociais, na minha concepção (diversamente de Pondé) significam uma diferença sim (eu não me enquadraria entre os "céticos em relação as redes sociais"). Talvez não de conteúdo, mas claramente de forma, o que, segundo Marshal Macluhan, também conta, pois "The medium is the message." Dizer que não é, reduzindo os "facebooks" da vida a mero detalhe (desqualificando qualquer consequência dele), equivale a dizer (como, de fato, dizem alguns) que a globalização nada mais é que uma mera extensão das viagens das caravelas de Cristovão Colombo (só que mais rápidas). O fato de cada invenção, cada novo avanço humano não tirar a Terra do seu eixo solar não quer dizer que ele não signifique nada. Dizer que andamos em círculos (como faz Pondé) é comparar as pinturas rupestres com as obras de Shakespeare. Até considero-me um pós-narrativo, talvez sem a acidez dos franceses (Jean Baudrilard, Jean François Lyotard, Emil Cioran), mas fazendo uma leitura algo próxima da que faz Richard Rorty, ou seja, de que não existe um horizonte pré-determinado, teologicamente ou não, para o qual se dirigiria inexoravelmente a raça humana em seu progresso (como visualiza Auguste Comte e os positivistas, de quem deriva o nosso lema "Ordem e Progresso"). O problema é que Pondé, para manter o ar blasê que lhe deu fama, da qual ele faz questão pois não tem o mínimo viés de reclusão a la Lauro Trevisan, joga qualquer transladação da criatividade humana para a orla da materialidade na lata de lixo da insignificância. O fato é que, no entanto, tanto a própria existência de alguém como Pondé e a sua atual fama são frutos desses novos tempos que ele tanto critica; Por um lado, ele deve a sua existência enquanto filósofo profissional ao fato de ser possível hoje ganhar a vida falando de imanências. Isso é produto do progresso humano (no momento em que a vida humana deixa de ser apenas sobrevivência, para tornar-se existência, para usar os termos do aforismo de Victor Hugo). Já a fama da crítica pela crítica, por sua vez, é o resultado de uma época desbussolada, onde se buscam respostas mesmo naqueles que defendem a ausência dessas.

A referência à "almas ridicularmente infantis num corpo de adulto", levada ao extremo, para a crítica dos sábios que pairam acima dessa ralé que são as pessoas comuns e a sua mundanidade excessivamente terrena. Discordo tanto da suprema superiodade de uns (como parece ser o caso de Pondé, sempre ansioso para, tal qual um bedel cósmico, passar um "pito" em quem se atreve a existir sem ter lido Ludwig Wittgenstein de trás para frente) quanto da suprema inferioridade dos outros, materializada no selo da suposta infalitidade crônica genericamente distribuído. Qual foi o censo que que contabilizou, de um lado, o 1% de guardiões ungidos da racionalidade e, do outro, os 99% de "bêbes grandes"? Ignoro os dois extremos e aposto na "geléia geral", da qual faço parte, que consegue ler Pondé e assistir as “vídeocassetadas” do Faustão. A infantilidade, ao lado da genialidade; a solidariedade, ao lado da selvageria, todas essas dicotomias basais integram a quintessência do ser humano. A diferença entre Adolf Hitler e Madre Teresa de Calcutá é de quantidade, não de qualidade. Qualitativamente, ambos eram serem humanos de carne e osso, com qualidades e defeitos. A distinção historicamente consolidada entre eles reflete as diferentes quantidades de cada um daqueles elementos na composição final das suas personalidades. Não eram anjos e demônios. Mas seres humanos em sua diversidade. Tentar totalizar qualquer um dessas características intrínsecas (cada um de nós não é sempre diligente, apolíneo ou ordeiro; podemos igualmente ser, em circunstâncias diferentes, relapsos, dionisíacos e caóticos) é fazer uma leitura apressada da fatalidade do “homem unidimensional” de Herbert Marcuse. Apesar de igualmente colérico, como parece ser a sina dos franceses, desalojados, à contragosto, da posição de luminárias da civilização ocidental, Pascal Bruckner faz uma leitura interessante dessa tese dos “bebês grandes” em seu livro “A Tentação da Inocência.” Porém, escrito na década de 1990, o livro parece refletir seu “zeitgeist”. Aplicar tal tese com ares de verdade revelada, com jovens “ocupando” Wall Street, bem como as praças da Espanha, Grécia, Chile, Norte da África e Oriente Médio (usando destacadamente as tais “redes sociais” em relação às quais Pondé é tão cético em relação às suas conseqüências) me parece, no mínimo, passível de reavaliação. Creio que Ponde comete o mesmo erro ao transpor, “ipse literis”, um narcisismo que marcou a juventude dos anos 1980 nos EUA (uma vez que essa é a premissa de um estudo citado por ele no artigo) para tentar entender o fenômeno do hedonismo via Facebook, sendo este apenas um instrumento para externalizar aquele. Concordo com Ponde sobre a natureza instrumental do Facebook. Porém discordo tanto do conteúdo que move tal ferramenta (seria o narcisismo dos jovens americanos da geração Yuppie o mesmo dos Indignados espanhóis dos dias de hoje?) quanto da irrelevância dos seus movimentos em si. Como diz Antônio Machado, “Caminhante, o caminho se faz ao caminhar.” Nesse sentido, nenhum passo, por menor que seja, é desprovido de significado. Seja ele, “a giant leap for mankind” ou um simples “Facebook”.